Correio de Carajás

O homem que economizou o desejo e perdeu a semana inteira

Há casais que rezam o terço todas as noites. Luiz Mário e Jocélia rezavam no domingo.

Era sempre depois do almoço, religiosamente depois do almoço. O feijão ainda quente na panela, o cheiro de alho refogado suspenso no ar da casa da Folha 16, e Luiz Mário já sabia: era aquele o horário solene da semana. Não antes. Nunca antes. E, sobretudo, nunca em outro dia. Amor, para ele, tinha calendário fixo, dia santo e liturgia própria.

Luiz Mário viera de São Luís no fim dos anos 1980, transferido como gerente do Banco Bradesco. Gravata firme, discurso econômico, futuro promissor. Em Marabá conheceu Jocélia, pedagoga, professora de fala mansa e olhos verdes e atentos. Os pais dela aprovaram rápido. Um gerente de banco não era apenas um marido: era um símbolo de segurança. Dois anos depois, casaram-se.

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No segundo ano de casamento, Luiz Mário pediu demissão. Trocou a mesa climatizada do banco por uma mercearia na Folha 16. Passou a viver daquilo e para aquilo. O comércio foi encolhendo aos poucos, como se tivesse vergonha do dono. Clientes iam embora não pelo preço, mas pela rispidez, pela palavra atravessada, pelo mau humor permanente de quem acreditava que o mundo lhe devia algo.

Foi nesse tempo de balcão e solidão que Luiz Mário instituiu, sozinho, a regra: sexo apenas aos domingos, depois do almoço. Sem exceções e nem negociação. Se Jocélia estivesse menstruada, paciência. Não havia compensação na segunda, terça, quarta ou quinta-feira. O desejo não acumulava. Vencia, estava perdido.

Jocélia tentou. Reclamou, argumentou, silenciou. Nada adiantou. Então fez o que muitas mulheres fazem quando o corpo é ignorado: transferiu a energia. Mergulhou no trabalho, na escola ali perto, na criação dos filhos. Criou meninos, formou alunos, segurou o casamento com a mesma disciplina com que ele regulava o domingo.

Havia domingos em que Luiz Mário se atrasava de propósito. Lavava o carro com uma lentidão quase provocativa, esticava a conversa com algum freguês imaginário, fingia organizar notas fiscais que já não levavam a lugar nenhum. Jocélia percebia, mas não dizia nada. Aprendera que o silêncio, às vezes, era a única forma de preservar alguma dignidade. O corpo dela, nesses dias, parecia um território interditado, uma repartição pública fechada fora do expediente.

Na escola, Jocélia falava de afeto, escuta e cuidado. Explicava às crianças que o amor não podia ser imposto nem controlado. À noite, em casa, guardava a ironia dentro da bolsa junto com os cadernos corrigidos. O casamento havia se transformado num acordo tácito: ele mantinha a regra; ela mantinha a família funcionando. E assim os anos passaram, sem escândalos, sem traições, sem paixão: apenas com uma ausência organizada.

Luiz Mário, por sua vez, acreditava sinceramente que estava certo. Para ele, o desejo precisava de contenção, como dinheiro no bolso ou mercadoria no estoque. Excesso levava à ruína. Nunca percebeu que, enquanto economizava o sexo, Jocélia gastava a vida. Não notava os olhares que se apagavam, nem o modo como ela já não esperava o domingo, apenas o suportava.

Moraram na Folha 16 quase a vida toda.

Quando se aposentou da sala de aula, Jocélia fez uma conta que não cabia em planilha: aos 60 anos, ainda dava conta. E não é que dava mesmo? Deu conta de sair de casa, de procurar outra pessoa, de deixar Marabá. Foi para Fortaleza com um novo amor. Nova cidade, nova rotina, novos dias – inclusive às segundas, às quartas, às sextas…

Luiz Mário perdeu a esposa, perdeu a casa cheia, perdeu os filhos, que foram morar sozinhos em bairros distantes. Nem mesmo o sexo furtivo de domingo lhe acompanhou. Entrou em depressão. Mas não se arrependia. Nunca se arrependeu. Dureza, para ele, sempre foi sinônimo de caráter.

Quatro anos depois de descobrir que o amor não precisava esperar o relógio, Jocélia foi visitada pela covid-19. Foi levada ao hospital como quem entra numa sala de aula pela última vez, sem saber que aquela porta já não se abriria de novo. Passou dois meses entre aparelhos, silêncios e respirações emprestadas. Morreu longe do calendário que a aprisionara por tanto tempo, deixando para trás apenas a lembrança de que viver, afinal, nunca foi questão de domingo.

Quatro meses depois, Luiz Mário, que tanto a amaldiçoara pela separação, sofreu um AVC numa quitinete da Folha 28, onde passou a morar sozinho. Foi encontrado no dia seguinte e levado ao hospital. Morreu exatamente num domingo depois do almoço, entubado no Hospital Municipal de Marabá.

Sem direito a nenhum orgasmo.

Talvez tenha sido o único domingo em que o calendário, finalmente, falhou.

*O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.