Mamãe proibiu as crias de assistir televisão na vizinha. De repente, sem explicações, não podíamos mais sentar no mosaico asseado da sala de dona Eleonor. Uma senhorinha vistosa, pés bonitos, alvos, e tornozelos sempre raspados na gilete. Cheguei a brechá-la muitas vezes aparando os pelos e, silencioso, permanecia ali.
Ia ela. Espuma de Alma de Flores e pancadinhas na beirada da bacia pequena de metal para despregar o que a lâmina tinha navalhado. Havia uma delicadeza no ritual de dona Eleonor que me tirava a inocência. Seguia clandestino, desde o rasgo na caixa da Gillette ao desdobramento do papelzinho de seda transparente da Wilson Darwin.
Testemunhei, por vezes, dona Eleonor se raspar e desfilar as canelas grossas pela Travessa Lauro Sodré. As mais polidas em óleo de amêndoa e aroma. Mulher generosa, bem-amada, mãe de dois amigos que nunca imaginaram os pensamentos que me vinham sobre a mais requisitada costureira daquele perímetro da Velha Marabá.
Leia mais:Além de ser bonita, tinha vocação pra boniteza. Qualquer coisa, mesmo avental de pé de fogão, lhe cabia a perfeição. E teve sorte até na hora de parir. Mulheres que davam à luz na década de 70, herdavam das cesarianas remendos grosseiros dos médicos. Cicatrizes engembradas. Ela não, deu passagem na bacia e não se dizia que tinha descansado duas vezes.
Foi então, que um dia, mamãe baixou uma ordem. Por só haver televisão na casa da costureira (na rua toda), estávamos impedidos de incomodá-la. Logo naqueles dias, metade emocionante de o Carinhoso. Nos capítulos mais esperados da novela da aeromoça Cecília e seus dilemas (maçã do amor) entre Eduardo, Humberto e Santiago…
Estava proibido, o contrário peia. E todo começo de noite, já banhados para ganhar a rua, era de partir o coração ouvir a música que anunciava mais um dia da trama. “Ah se tu soubesses como eu sou tão carinhoso e muito, muito que te quero… “. E, logo em seguida, o anunciante do horário das 19 horas…
Nunca houve televisão na Lauro Sodré. Mas quando dona Eleonor comprou uma, em 24 vezes, a rua toda se viciou. E ela, uma gentileza desmedida, não se importava com os televizinhos. Mesmo que lhe tapassem os ventos dos basculantes e muitos só fossem embora com a musiquinha e a voz do encerramento da programação.
Adulto não explicava nada a criança. Em conversa de gente grande não nos cabia e a lei do Cinturão imperava. Mas os miúdos sempre tiveram antenas e não há nada que a rua, um dia, não fique sabendo por porta de travessa. Dona Eleonor, saúde esbanjante, estava desenganada.
Assim, sem mais nem menos. Repentino. Daquelas notícias que toda família já ouviu um dia ou reza para não receber. Um carocinho no rosto não era simplesmente uma espinha de se tratar com Minâncora. E o maldito, aos poucos e em seis meses, carregou a boniteza e o rosto de dona Eleonor.
Em vida, doou o aparelho (preto e branco) para a Igreja de São Félix. Mesmo o padre da época não largava o Carinhoso. A pedido dela, foram retirados todos os espelhos da casa. Nenhum. Os vidros dos basculantes foram trocados. Quem estava fora não via o movimento de dentro. Portão do jardim sempre fechado e raras visitas.
Nunca mais fui brincar na casa dela e não houve mais chance para brechá-la. As portas voltaram a ser abertas quando todo mundo da rua se mobilizou para ir ao enterro dela, bem ali pertinho. Naquele tempo, não se alugava ônibus como hoje, porque todos que morriam na Velha Marabá eram levados a pé para o cemitério, com parentes e amigos se revezando no carregamento do caixão.
Mesmo que mamãe não permitisse (e eu tivesse medo na hora de dormir), fui ao velório na sala onde teve uma televisão. Dona Eleonor estava com o rosto coberto, envolvido, mas os tornozelos estavam lisos, raspados…
“Meu coração, tum-tum, tum-tum, bate feliz, tum-tum, tum-tum…”
*O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.