Correio de Carajás

O capitalismo deu certo. E isso não é uma ironia.

Meu carro pifou logo depois que eu abasteci. Não, não é problema com a gasolina. O carro é velho mesmo (2013 é o ano da máquina). Como o socorro demoraria a chegar, eu fui ao banco resolver umas coisinhas. Andei aqueles 600 metros, me lamentando por não ter um carro melhor e essas coisas que a gente só lembra quando fica de pé.

Mas, chegando à porta da Caixa Econômica Federal, na Nova Marabá, me deparei com uma cena que já tinha visto outras vezes: pessoas dormindo na rua, na porta do banco.

Embora seja uma cena comum nas grandes cidades, eu decidi registrá-la para além das minhas retinas, justamente por isso, porque não se pode aceitar que seja algo comum. Não há nada de normal em driblar pessoas deitadas no chão para chegar até a porta de uma agência bancária, como se ali fosse coisa qualquer jogada na rua.

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Peguei-me a pensar no encadeamento de prodígios que poderiam ter gerado aquela cena que se repete em quase todos os lugares do mundo. Até que, de repente, me dei conta de que não há prodígio algum. Pessoas dormindo na porta dos bancos, das igrejas, nas calçadas, integram um catálogo de normalidades do modo de produção capitalista. São resultado de nossa escolha.

Levei o carro pra oficina

Enquanto o mecânico pingava de suor colocando meu “possante” pra funcionar, eu refletia sobre a coisificação das pessoas e sua descartabilidade no modo de produção capitalista.

Da mesma forma que se descartam celulares obsoletos e roupas velhas, as pessoas sem dinheiro, sem família, os “não-consumidores”, são descartados, jogados na sarjeta. Não há espaço para eles.

Os espaços de lazer cada vez mais se coisificam, transformando-se em espaços de compra, de consumo. O mais absurdo é que esse é um “processo natural”. Tudo precisa ter utilidade econômico-financeira e cada um se torna empreendedor de si. É assim que é.

O fracasso humanitário adormecido debaixo do lençol sujo do morador de rua é tratado como fracasso pessoal, fruto da preguiça e não de uma sociedade desigual, porque o capitalismo abre as portas a todos, teoricamente, só teoricamente.

O carro ficou pronto

Girei a ignição e o carro funcionou legal. Pude levar meu filho mais novo pra casa. Dei umas voltas pela Nova Marabá e até esqueci da necessidade que tenho de comprar outro carro.

Mas não me esqueço nunca de que, quando a noite cair, o chão duro da calçada será a cama de muita gente de carne e osso, igual a mim.