📅 Publicado em 11/12/2025 09h06
Eu tinha 14 anos, um crachá pendurado no pescoço e um medo danado de errar uma letra na máquina de datilografia. Era office boy do Banco Bandeirantes, na Antônio Maia, quando o verão de 1984 decidiu estilhaçar o silêncio da sesta marabaense a tiro e grito. Naquele meio de dia, o asfalto fervia, o garimpo de Serra Pelada fervilhava com cem mil almas atrás de ouro, e a cidade, sem saber, se preparava para assistir ao capítulo final de um personagem que parecia saído de faroeste ruim: o famigerado Nelsão.
O nome de batismo era pomposo: Nelson dos Santos Sarmento. Mineiro, chegou por aqui na década de 1970 como gerente de fazenda Bamerindus. Falava baixo, fazia conta de cabeça, conhecia o peso do boi e o humor dos patrões. Depois, um dia, largou o pasto e se deixou levar por outro chamado: Serra Pelada. Foi pro garimpo, desceu na lama, se misturou aos anônimos que sonhavam com o grito “bamburrou!”. E dizem que ele bamburrou mesmo. Enricou. O problema é que o dinheiro, em certas almas, não entra sozinho: traz de brinde um certo desprezo pelo resto da humanidade.
Nelsão empinou o nariz, trocou a pele de gerente pela de pistoleiro. Lá pelas tantas, já não era mais só um ex-garimpeiro endinheirado. Virou patrão de capangas, figura temida em esquina, mesa de bar e estrada de chão. Desses nomes que as pessoas falam baixo, olhando por cima do ombro. Em Serra Pelada, onde o ouro brilhava e as vidas valiam pouco, gente assim brotava como mato na beira de barrancos.
Leia mais:Quando começaram a correr as notícias de que tinham botado preço na cabeça dele, Nelsão não duvidou. Entrincheirou-se na própria casa, feito coronel acuado em filme de bangue-bangue. Passou mais de duas semanas assim, armado até os dentes, vigiando cada ruído no quintal. Na madrugada do dia marcado para sua morte, um bando de pistoleiros apareceu em volta da casa, disparando para o alto, riscando a noite com estampidos, como quem avisa: “a conta chegou”.
Ameaçado, Nelson pediu proteção policial. O comandante da PM, talvez acreditando que ainda valia proteger certos homens perigosos, mandou um contingente de dez policiais para a frente da casa. Lembro bem dos comentários cruzando o balcão do banco: “A casa do homem tá cercada de farda”, “Vai dar coisa feia”. Os soldados ficaram ali a manhã inteira, fuzis à mostra, como um recado para quem passasse. Mas perto do meio-dia, o estômago falou mais alto. Resolveram ir almoçar, prometeram voltar depois. Em Marabá, até a tensão faz pausa pro prato de comida.
Foi nesse intervalo que Nelsão decidiu arriscar. Deixou a trincheira doméstica na companhia de um segurança particular. Os dois saíram, talvez achando que a luz forte do dia desarmasse emboscadas. Mas quem vive de morte sabe que o sol também faz sombra. Eles foram seguidos, sem perceber. No centro comercial mais importante da cidade, em frente ao Banco Bamerindus, ao lado do Bradesco, onde hoje a modernidade vende geladeira em loja de Magazine Luiza, o passado puxou o gatilho.
Do balcão do Bandeirantes, eu via a rua pela fresta da porta de vidro. Lembro de alguém gritar: “Tiro! Tão atirando!”. Nelsão tinha acabado de sacar dinheiro no Itaú e atravessava a rua para ir ao Bamerindus depositar quando a chuva de balas começou. Ele e o segurança ainda reagiram. Por alguns minutos, a Antônio Maia virou cenário de guerra: gente correndo, senhora largando sacola, carro freando no seco, funcionário se jogando atrás de balcão. O barulho seco dos disparos ecoava como se fosse dentro da cabeça da gente.
Quando a pólvora silenciou, os dois corpos ficaram estendidos na calçada, o dinheiro misturado ao sangue, notas coladas no cimento. O centro comercial de Marabá, acostumado ao sobe e desce de garimpeiro endinheirado, ficou sacudido, tonto. Os bandidos recolheram a própria fumaça e sumiram. Nunca foram vistos de novo, como se o mesmo buraco que engolia gente em Serra Pelada tivesse engolido também suas identidades.
Naquele tempo, eu, um adolescente de 14 anos, só entendia que o mundo dos adultos podia acabar de repente, no intervalo entre um depósito e um cafezinho. Ser office boy naquela quadra era caminhar todos os dias por um tabuleiro onde rei, peão e pistoleiro cruzavam a mesma calçada. Hoje, quando lembro do corpo de Nelsão no chão, vejo menos a figura do “famigerado” e mais o retrato torto de uma época em que a lei era frequentemente terceirizada para a mira de um revólver.
Porque Nelsão não era exceção. Era sintoma. Outros nomes circulavam nas conversas cochichadas: gente como Quincas Bonfim, por exemplo, que desfilava pela região numa Veraneio verde, seguido de perto por uma C-10 cheia de guarda-costas. Diziam que ele tinha envolvimento na famigerada chacina da fazenda Ubá, mas nunca viu atrás das grades o lado de dentro do sistema que ajudou a apodrecer. Passou pela história como sombra armada: todo mundo sabia, mas a Justiça dizia que não sabia de nada.
Segundo João Hermínio, Quincas também acabou como viveu: num tiroteio, só que em Imperatriz, do outro lado da ponte e da fronteira. E assim, um a um, os pistoleiros daquela era de ouro e sangue foram caindo, substituídos por outros rostos, outras armas, outras ambições. Serra Pelada secou, os barrancos viraram ruína de fotografia, mas a memória desses homens ainda ronda as esquinas de Marabá, feito fantasma que se recusa a aceitar aposentadoria.
Eu sigo aqui, agora não mais office boy, mastigando lembranças. E cada vez que passo pela Antônio Maia, imagino que o asfalto ainda guarda, em alguma camada invisível, o estampido daquele meio-dia de 1984 em que o famigerado Nelsão descobriu que, no fim das contas, ninguém bamburra contra a morte.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.
