As mortes por dívidas com drogas e por vinganças envolvendo criminosos somam quase 100% dos homicídios em Marabá. Mas o assassinato de um barqueiro no final de semana, na orla do Rio Tocantins, executado provavelmente com sua própria arma, por um banhista, traz à tona um debate que precisa ser travado por toda a sociedade brasileira: a quebra do pacto social e o retorno à barbárie, com armas circulando nas mãos de pessoas comuns, favorecendo um cenário onde vence o mais forte e não aquele que tem a razão, como seria justo em qualquer sociedade civilizada.
Conforme divulgado pelo grupo CORREIO, na madrugada de sábado (20/7), o barqueiro John Wenderson Moura da Silva, de 26 anos, se desentendeu com banhistas no momento do pagamento de um frete (da praia até a orla), porque os clientes se recusaram a pagar R$ 30 e pagaram apenas R$ 20, pois queriam ser deixados em um local um pouco mais distante de onde o barqueiro os deixou.
Houve discussão e, em dado momento, o barqueiro sacou de uma arma que levava consigo e atirou em um dos passageiros, Iverson Lorran Bandeira Fonseca. Mas o primo do baleado, Wanderson Coelho Moreira, se atracou com o barqueiro, tomou-lhe a arma, acertou-lhe algumas coronhadas no rosto e deu um tiro em sua nuca, que a bala saiu pelo olho. Simples assim: em questão de segundos, aconteceu uma tragédia de consequência irreversível.
Leia mais:Iverson Lorran está internado no Hospital Regional, com um tiro na barriga, enquanto Wanderson Coelho está preso e John Wenderson virou mais um número no Instituto Médico Legal (IML).
Ninguém há de dizer que esta morte representa o retorno da violência após um período de paz, porque paz há tempos não existe. Mas a forma como esse crime aconteceu precisa ser debatida como um sinal dos tempos.
Afinal, quem tinha razão? O barqueiro que se recusou a deixar os clientes no ponto em que pediram? Os clientes que pagaram “Dez Reais” a menos porque não foram levados até onde queriam? Não importa de quem é a razão, o desfecho final do caso não foi guiado pela razão, mas por quem foi mais rápido e conseguiu abater o oponente a tiros, como uma briga entre animais que não conseguem se comunicar. Será esta a sociedade que queremos?
INSTRUMENTO DE MORTE
Na visão do cientista social Marcelo Melo dos Santos, ouvido pelo CORREIO, para entender toda essa dinâmica da violência é preciso ter em mente que esses casos ocorrem diante de uma conjuntura específica, um momento em que o próprio governo incentiva o armamento da população. “Do ponto de vista simbólico há um apoio do governo a esse tipo de política de armamento e isso se reflete em alguns casos como este”, observa.
No caso de Marabá, Melo faz questão de explicar ao Jornal que este é o segundo caso de assassinato nesses moldes em menos de dois meses. O primeiro, bem lembrado por ele, aconteceu em 9 de junho, quando o jovem Ronaldo da Silva Lima, de 22 anos, foi assassinado por Geilson Cezário de Souza, em um supermercado lotado durante uma discussão na fila do caixa.
Para o cientista social, esse tipo de episódio revela que existe uma sensação por parte dos que se intitulam “cidadãos de bem” de que podem andar armados e isso vai resolver o problema. “O ponto central é que a arma é um instrumento de morte e não de defesa, mas muitas pessoas não entendem isso”, alerta.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Atlas da Violência, as mortes por arma de fogo em 2019 aumentaram 6,8% em relação a. “Isso reflete um pouco da política do governo de tentar armar a população, numa concepção absurda e ignorante de que as armas resolvem o problema da violência, mas as pesquisas mostram que é exatamente o contrário”, adverte.
ILEGALIDADES E MUITAS PERGUNTAS
Já o advogado criminalista Ricardo Moura entende que essa ocorrência é extremamente preocupante. “Primeiro existe a ideia de que um barqueiro estava portando uma arma, tudo indica que para fins de defesa pessoal, depois essa arma foi manuseada por terceiros e ocasionou uma morte. A pergunta que fica no ar é será que o barqueiro fazia jus a esse direito em razão da profissão que exercia?”.
Ele responde a pergunta, colocando a situação da seguinte forme: “Se você perguntar para outros barqueiros, eles vão dizer que a profissão deles é insegura, mas se você perguntar para os transeuntes, eles não se sentiriam seguros em saber que o barqueiro estaria de posse de uma arma de fogo”.
Ainda segundo o advogado, essas armas usadas em Marabá ilegalmente não possuem número de identificação, o que revela uma situação completamente imprópria. “Se você questionar para a sociedade quem está errado, vão ter opiniões divididas”, comenta, acrescentando que o caso vai requerer uma investigação minuciosa por parte da polícia.
“A autoridade policial tem que desvendar esse caso para saber: se trata de um homicídio duplamente qualificado com coautoria e partícipe? Se trata de uma legítima defesa? Ou se trata de uma lesão corporal ou roubo seguido de morte? Para quem foi o dinheiro da embarcação? Como a arma desapareceu não foi submetia a perícia. Outra pergunta é: quem se livrou da arma com qual objetivo? São perguntas que a polícia tem que responder”.
Comerciante reivindica mais segurança na orla
Proprietário de uma empresa de produtos náuticos localizada na orla, o comerciante Adão Júnior observa que o fluxo de carros e motos é intenso aos finais de semana, sobretudo neste período do ano, e isso pode acarretar acidentes. Além disso, há muita gente conduzindo veículos bêbadas, o que pode gerar também confusões devido a aglomeração de pessoas. Segundo ele, até mesmo o som alto de um carro pode causar problemas. “Eu gostaria que os órgãos de segurança se fizessem mais presentes”, pede Júnior, principalmente da Guarda Municipal e do Departamento Municipal de Trânsito e Transporte Urbano (DMTU).
Falando especificamente da praia, ele observa que entre 17 e 19 horas o tráfego de embarcações é muito intenso e também pode gerar atritos, de modo que o policiamento também se faz necessário de forma mais ostensiva. “Houve uma morte aqui e ninguém viu”, lamenta, acrescentando que mesmo depois do homicídio não se viu uma presença mais forte dos órgãos de segurança.
Júnior observa que a praia é bonita, o ambiente da orla é agradável, mas para atrair mais turistas e melhorar o espaço para o marabaense de forma geral é necessário mais segurança e também dar uma melhorada na infraestrutura, com uma recapagem da pista de rolamento da orla e ainda a colocação de quebra-molas para reduzir a velocidade dos veículos.
Sobre os questionamentos do comerciante, a Secretaria de Comunicação da Prefeitura explicou que as informações já foram repassadas à Secretaria Municipal de Segurança Institucional (SMSI) e Secretaria Municipal de Viação e Obras Públicas (Sevop) para tomada de providências.
PM fala sobre policiamento na área de praia
Também ouvido pelo jornal, o comandante do 4º BPM, coronel Dayvid Sarah, falou sobre como tem sido o policiamento na orla do Rio Tocantins e também na Praia do Tucunaré, em resposta à reclamação de barqueiros e rabeteiros que atuam fazendo travessia de banhistas e também de comerciantes da área. Os profissionais alegam estar trabalhando com pouca segurança, sendo necessários mais policiais e também guardas civis municipais para dar suporte aos barqueiros.
Segundo o coronel Dayvid, em casos como este sempre se procura apontar um culpado e nesse caso a bola da vez são os órgãos de segurança pública. Mas ele observa que é inviável fazer policiamento em um local onde o fluxo de pessoas é baixo, deixando outros pontos descobertos. “Ficar parado em um local onde não tem movimento é contra minha determinação; viatura tem de ficar onde tenha maior quantidade de pessoas porque ali a probabilidade de acontecer casos de violência é maior”
E não é só isso: “O barqueiro estava portando uma arma de fogo e foi morto com a própria arma. Isso é inevitável, nós temos que colocar os pingos nos is”, observa o oficial, acrescentando a seguinte pergunta: “Havia necessidade de estar armado?”.
Ainda segundo o coronel Dayvid, o grande problema é que ao final de jornadas de trabalho e também ao final de festas, o ser humano costuma estar estressado, alia-se a isso o fato de que o barqueiro portava uma arma.
Inclusive, o coronel deixou claro que, a partir de agora, as abordagens na praia do Tucunaré não se limitarão aos banhistas apenas, mas também os barqueiros precisarão ser revistados, como forma de prevenir possíveis atritos que possam terminar em tragédias como foi o caso. (Chagas Filho)