Nega Maria de Braz, filha de Sinhá Braz, tinha horror relar com homens. Morreu donzela e a enfiaram num vestido de noiva, mesmo que não tivesse externado o desejo. Mas no falecer, ajeitada na cama que ninguém quer se deitar, viajou de moça comprometida sem nunca ter sido. Cheiinha de monsenhores aos 90 e poucos anos.
E é verdade, lavrada fé em palavra de outros moradores da Folha 9, Nova Marabá. Oco e um lugar quase nunca lembrado na Nova Marabá, que tem poucas ruas e parecia que menos moradores ainda nas casas acanhadas de madeira feitas pelo governo federal. Um bando de meninos e meninas, hoje mulheres e homens feitos, desterrados, filhos de gente que veio para Marabá para trabalhar nas obras da primeira ponte sobre o Rio Tocantins, aquela que o trem passa apitando e acordando meio mundo de gente. Passado é o que vai se esfumaçando em lembrança.
Rogério, meu amigo de futebol das antigas, via Nega Maria de Braz, com calores, correr para se assear ou banhar-se no tanque das mulheres. Havia outro, separado, só para varões. O pirralho, como ainda não havia descoberto o que o apetecia, acompanhava a emboança das fêmeas. As usufruídas, as moças frangas e ancoradas.
Leia mais:Nega Braz não entrava e nem saia nua do tanque. Tirava o vestido grande no primeiro mergulho e esfregava o corpo inteiro (os peitos bons, os íntimos sem gilete) na bucha seca arrancada da cerca do quintal, feita com madeira branca, ganha de um vereador do PMDB. E ensaboava-se com as outras numa inocência de anjo em dia de coroação de Nossa Senhora.
Pra sair, mergulhava na tina medonha e tornava vestida. Corria ensopada, pingando, mas a ventaria a fazia chegar seca no alpendre. Onde se ria da brincadeira dos mais ardilosos na imitação dos capítulos das novelas em preto e branco. Cenas imorais em uma TV comprada na A Credilar e que passava As Pupilas do Senhor Reitor, Barba Azul…
Os beijos dos artistas, na boca de cuspir de nojo de Nega Braz, viravam relinchadeira entre o magote de pivetes. Beijavam as paredes, osculavam a palma ou as costas da mão no faz-de-conta do romance água com açúcar. Nega Braz ria, mas não ousava brincar de folhetim de mocinha e herói.
Beijo de lábio, língua no céu da boca e orelhas violadas… Não, nunca. Nunquinha. A boca de Nega Maria de Braz, ladainhava, era pra comer, beber, cuspir e assobiar. Sagrada de receber, serva, a hóstia santa e nenhum outro corpo transfigurado.
Nem quando viu as fitas chuviscadas de Mary Leta Dorothy Lamour Slaton, no Cine Marrocos, se coçou.
Nega Braz não era de homem nem de mulheres. E até tinha vontade de se casar, mas não via vantagem em ser invadida. Desejo vindo das brincadeiras de boneca (bruxa de feira), algazarra de casinha, pai, mãe, comidinha de araque. Mas quando começavam querer bulir, escapulia num corisco.
Coube em um vestidinho de prometida a noivo nenhum. Guardada virgem. Sem dote nem abuso de homem ou carecer se lavar para ser usada. Nem parir récua de crias, 17, 23… Feito a mãe, a avó e a bisavó.
Quando morreu, aos 90 e poucos, pouca gente no velório na Igreja Católica ali perto. E o que foram falavam durante a noite sobre como ela era mulher única, que buscava usufruir outras coisas da vida, que não o amor, pois tinha medo de ser penetrada, de ser obrigada, pelo macho, a fazer cuscuz de manhã, quando estivesse com vontade de comer pão massa grossa com margarina.
Por muitos anos, cozinhou para as irmãs, sobrinhos, e depois para si mesma, por quase duas décadas. Quando morreu, os meninos da sua meninice já eram avós. E os novos pirralhos a chamavam de vozinha virgem. Ela não ligava, porque o tempo do amor tinha findado.
* O autor é jornalista do CORREIO e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.