Correio de Carajás

Minhas falsas memórias e o adeus à minha sogra

Há algum tempo, eu vinha desejando uma boa morte para minha sogra. E não era daqueles desejos de que a velha se fosse logo. Tinha 86 e faleceu no dia 10 deste mês de julho. A relação de genros com sogras não tem um bom histórico por aí. Mas eu tinha orgulho de dona Maria Eden morar há cerca de 20 anos conosco.

A convivência era harmoniosa. Eu fazia as vontades dela e a reciprocidade era verdadeira. Na feira, aos domingos, sempre procurava a pacu branca ou dente seco que dona Maria tanto gostava de comer cozida.

Nos últimos anos, sempre preocupada, como uma mãe, ela ficava sentada no sofá me aguardando chegar da Redação em noites de fechamento do jornal para circulação no dia seguinte. Só ia dormir depois que eu abria a porta e a gente trocava umas palavras.

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Muita gente pensa, até hoje, que eu sou bom de memória, que escrevo crônicas sobre fatos do passado ou livros que remetem à história de Marabá e região. Mas a verdade é que sou uma farsa.

Explico. Recorri sempre a gente como minha sogra. Dona de uma memória invejável, ela recordava com precisão de muitos fatos e nomes de pessoas com quem convivem por quase um século entre Marabá e Itupiranga. Também devo ao magistral Plinio Pinheiro Neto, advogado que também mantém a memória fresca e conviveu no mundo político e empresarial de Marabá por muitas décadas.

Depois que minha sogra descobriu um câncer, há cerca de seis anos, passei a lhe ouvir ainda mais para registrar fatos que ela ainda não tinha me contado. Fiz questão de gravar alguns em vídeo, para o caso de minha memória me deixar na mão (o que quase sempre acontece).

E não era só sogra. Era uma segunda mãe. Uma mulher que no passado, superou enormes desafios para educar os filhos. Teve quatro. Duas meninas, que até hoje são confundidas como gêmeas, davam gosto no estudo e ela decidiu fazer o que fosse preciso para mantê-las na escola.

A criação da prole e a manutenção das filhas na escola dependeram, por longos anos, da venda de chopp no varejo. Também fazia bolos e outros guloseimas para ter dinheiro. A pobre mulher não sabia, mas estava plantando ali o seu futuro.

As filhas começaram a trabalhar antes dos 15 e aos 25 estavam formadas e compartilharam a responsabilidade pelo cuidado com a mãe. Ela ajudou a cuidar de netos e tinha um coração de quem desejava aninhar todos a vida inteira.

Quando a pandemia começou, minha esposa montou uma estrutura para proteger a mãe do coronavírus. Em tratamento de câncer, ela poderia ser presa fácil para a covid-19. Ao contrário de muitos idosos teimosos, que fogem de casa até hoje para dar um rolê por aí em tempos de pandemia, ela mantinha-se resignada em casa.

As visitas às duas irmãs, na Folha 18, ocorriam raramente, só quando a neta Brenda Pompeu vinha a Marabá e a levava de carro até a porta da casa de Edília e Édila. Todas de máscaras se cumprimentavam de longe e trocavam algumas palavras.

Antes de sentir-se mal, nos 20 dias que antecederam sua morte, dona Maria me fez um pedido sério e exigiu confirmação com o olhar: “Ulisses, depois que a pandemia passar, se eu ainda estiver viva, me leva pra conhecer o Piauí. Eu queria muito viajar por aquelas terras e comer castanha de caju na fonte”.

Não deu tempo. Mas, pelo menos, como eu sempre pedia a Deus, que ela tivesse uma boa morte. Não foi, claro, como pensei. Sempre imaginei encontrando-a, pela manhã, sem respirar na rede em que atava no meio de seu quarto. Toda vez que eu saía para pedalar ou nadar às 5 da manhã, lá estava ela, sentada na rede, luz ligada e lendo sua Bíblia. Foi assim por anos.

Mas sei, também, que minha sogra não sofreu tanto. Foram cinco dias respirando com dificuldades em casa e 11 internada em hospitais. Descansou no Senhor, a quem fora fiel por mais de meio século.

 * O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica às quintas-feiras (muitas delas com ajuda da sogra)