Vivo o dilema de acompanhar a perda gradativa de memória da minha mãe, que aos 80 – a serem completados na próxima terça-feira, dia 10 – perde a memória recente com facilidade e a antiga desapareceu há um bom tempo. Se lhe digo à noite que vou lhe buscar no dia seguinte, bem cedo, ela quase sempre não vai se lembrar menos de 12 horas depois que tínhamos acertado o passeio.
Recordo ter lido, talvez até escutado, que quando ficamos velhos perdemos, infelizmente, a memória para fatos recentes, enquanto (compensação da natureza humana?) vamos apurando as lembranças mais antigas. Sempre duvidei dessa afirmativa, embora desconfiasse, bem no fundo da esperança e do medo, de sua dose de verdade: pra mim que sempre tive no passado o melhor da existência seria uma dádiva… Restava-me aguardar, lamentando, mas sonhando.
Com frequência tenho sido assombrado por recordações tão irremediavelmente perdidas na caixa-preta da memória que vivo abismado. Um primo me enviou uma foto abocanhando um osso de boi, desses que chamamos “corredor”, como se fosse dos tempos em que o homem era ainda e somente caçador; da imagem engraçada, quase selvagem, me veio a lembrança de meu saudoso pai, que adorava essa “guloseima” animal, mas para comer o tutano com primazia. Fica limpo, sem carne, sem aquela gordurinha deliciosa.
Leia mais:Ele batia numa única pancada seca para sair todo o tutano, que não repartia com ninguém, espalhando, glutão que era, por cima do feijão fumegante.
Da recordação da extravagância culinária de meu velho pai, a memória salta para um perdido dia em que, menino inquieto, subi na cadeira com tampo de couro de bode, quase na hora do almoço (talvez daí a associação das duas lembranças de tempos distantes, mas hoje bem misturadas, qual o feijão com tutano na mente), pois nessa traquinagem escorreguei os cotovelos do beiço da mesa e caí de boca na quina de madeira – um grito desesperado apareceu ao mesmo tempo em que dois dentes sumiram gengiva adentro: correria, meu pai saindo molhado do banheiro, a mãe chorando aflita, também os irmãos assustados.
Um carro arranjado com um compadre em corrida desembestada para o único hospital da cidade, e de lá para o consultório do prático de dentista Zé Maria, o choro sufocado por uma toalha apertada em nó atrás da nuca; da viagem de ida lembro quase nada, da operação dentária, recordo apenas de dois sujeitos auxiliando meu pai na minha contenção corporal, um em cada perna.
Meu pai agarrado aos braços finos, o prático-dentista trabalhando impávido, rindo até, e no meu desespero a imagem que hoje me vem são das cabeças de curiosos disputando lugar na janela por cima da empanada que servia de barreira para a rua: assustados meus olhos e os deles, que se revezavam para conferir meu desesperado espernear.
Depois, já calmo e com tufos de panos na boca, fomos para a casa. Nos próximos dias não poderia brincar, nem baixar a cabeça para não dar hemorragia. E menino não tem regras, aqui e acolá vai esquecendo e fazendo suas traquinices.
E de toda essa saga desimportante de minhas recordações infantis, esta é, certamente, a mais valiosa. A noite de domingo, quando eu tinha 9 anos, e a garotada jogava futebol na rua, em frente de casa. Meu primo Juarez não quis deixar barato o drible que lhe dei e me parou com uma falta que resultou com minha queda e o braço esquerdo fraturado.
Foi um desespero lá em casa, porque o braço virou para trás e tive, mais uma vez, que pegar o caminho do hospital do Sesp, na Rua 5 de abril. Mamãe ralhou, pais esbravejou e meus irmãos riram de mim. Só dona Rosilda, a vizinha do lado, olhou para mim com tanto cuidado na hora de aflição, e me acalmou fazendo um breve carinho na minha fronte molhada de suor, quem sabe dizendo palavras bonitas e consoladoras, mas que se perderam nos labirintos daquela inocente cabecinha.
Depois disso, fui para o hospital mais calmo. O braço engessado, as faltas nas aulas da 3ª série nos dias seguintes – até chegar à reprovação, porque não consegui fazer as provas no final do ano. Até hoje passo na porta e cumprimento dona Rosilda, agora com mais de 90 anos.
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.