Correio de Carajás

Memória é afeto à prova de enchente

Nem toda rua sem sombra é desamparo. No Bairro Laranjeiras, a luz costuma vir pendurada em varais, refletida em poças ou sorrindo dos olhos de quem insiste. Daniela Cristina aprendeu isso vendo a mãe abrir o mundo em fotografias simples: aniversário na calçada, roupa estendida, a tia cortando cheiro-verde, o cachorro esperando o pão quente. A câmera era da mãe; o olhar, ela descobriu depois, já era dela.

Aos 16, Daniela encontrou uma oficina de fotografia com celular na Galeria Vitória Barros. Não tinha equipamento, só vontade. Ia de manhã, voltava à tarde para repetir a aula, atravessando o Núcleo Cidade Nova de ônibus, guardando na memória cada dica sobre luz, enquadramento, silêncio. A hora do clique se tornou a melhor espera do dia. Quem a via chegar cansada, com caderno amassado e o celular antigo, não imaginava que ali nascia uma cartógrafa de afetos.

Seis anos depois, os passos dela caminham na borda entre a rua e o coração. Daniela fotografa feiras, portas entreabertas, o vento no muro grafitado, o menino da pipa na laje, o som das panelas na hora do almoço. Faz do Laranjeiras e de seus vizinhos: Liberdade, Independência, Jardim União e Bom Planalto um mapa de gente que insiste. Descobriu que a cidade, em especial a periferia, também é feita de pequenas ternuras: a mão que segura a outra na fila do posto, o abraço em dia de boletim, o copo de açaí dividido na beira de casa. “Fotografia”, ela diz a quem pergunta, “é quando a rua e a memória se reconhecem”.

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Para abrir caminho, Daniela criou o “Varal de Luz”, um empreendimento miúdo e valente, que divulga seu trabalho e oferece oficinas gratuitas de fotografia para adolescentes e mães. Com celulares de todo tipo, da tela rachada ao modelo emprestado, ela ensina a olhar. Ensina que a câmera não salva ninguém, mas ajuda a ver: e ver é um começo. Sai com as turmas para caminhar; volta com gente mais atenta ao que sempre esteve ali: o riso da vizinha, o balé dos fios, a sombra das mangueiras no fim da rua.

Num desses encontros, nasceu o ensaio “Se essa janela falasse”, resultado de uma semana de formação com crianças dos bairros citados acima. Tímida, ela sonha em criar uma exposição com a seleção de seus alunos. As crianças entraram tímidas e saíram de peito aberto, orgulhosas de ver as próprias imagens emolduradas. Daniela se pegou chorando no canto: entendeu que imprimir é aterrar a lembrança, dar chão para não se perder. Por isso, mesmo quando falta recurso, ela aparece com uma caixa de sapatos cheia de fotografias reveladas e reparte com as turmas o ritual do papel entre os dedos.

No caderno de planos, rabiscou um sonho grande e simples: o “Museu Fotográfico do Laranjeiras”. Um arquivo vivo de álbuns de família, retratos de time de várzea, festas de santo, mercearias antigas, selfies de hoje e de amanhã. Não precisa de mármore: uma sala emprestada, paredes limpas e o bairro inteiro como curador. Imagina visitas com avós guiando netos, reconhecendo parentes num retrato amarelado, revendo a casa que já não existe e a árvore que ainda insiste. Museus assim devolvem às ruas o que elas sempre souberam, que memória é afeto à prova de enchente.

Daniela anda sozinha. Tem um time de colaboradores com professores, agentes culturais, vizinhos que emprestam cadeiras, gente que doa papel e tinta. Ela mesma vive de bicos e de trabalhos fotográficos quando aparecem: aniversários, batizados, pequenos comércios. Ainda assim, não negocia o essencial, que é o tempo dedicado às oficinas, o cuidado com quem aprende, a delicadeza com quem confia. Fala baixo, ri fácil, pede licença antes de fotografar. Ao final de cada curso, entrega um envelope com duas revelações: uma para quem fez, outra para presentear alguém. Aprendeu com a mãe que foto boa é a que encontra lugar na casa dos outros.

Há quem diga que cidade grande endurece. No Laranjeiras, Daniela prova o contrário, moldando ternura com luz. Em suas imagens, a orla do Vavazão ganha cheiro de chuva, a Praia em frente aparece mesmo quando o rio se esconde, e o semáforo da Antônio Vilhena com a Paraíso vira palco de encontros pequenos — um vendedor oferecendo água gelada, uma moça ajeitando a criança no colo, um motoqueiro desviando do sol. O que poderia ser ruído vira reza silenciosa. O que era pressa vira pausa.

Ela acredita numa geração que chega com o bolso curto e o olho largo, que aprende em aulas públicas e faz do improviso uma estética. “Marabá tem fotógrafo para dar e vender”, repete, como quem abençoa. E sonha com parcerias, editais, um laboratório simples, uma impressora que não falhe, becos iluminados pela coragem de quem começa.

Às vezes, no fim da tarde, Daniela volta a pé para casa. O Itacaiunas sopra um vento leve, e o bairro guarda aquele barulho de prato e conversa. Ela caminha em silêncio, as imagens do dia ainda quentes, e pensa que talvez a fotografia seja isso: uma forma de agradecer. Quando o sol desce atrás das casas e deixa no céu um traço de laranja sobre o Laranjeiras, Daniela ergue o celular e clica. Não há glamour, só uma promessa: a de que amanhã, de novo, a cidade inteira caberá na palma da mão e no coração de quem se deixa iluminar.

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.

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