Correio de Carajás

Marabá: R$ 2 bi exportados e 28 mil sem um tostão furado

 

André Santos

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Cinco da manhã de sexta-feira (21). Desperto e sigo para a ponte rodoferroviária sobre o Rio Tocantins, a segunda maior do gênero no Brasil e a mais importante de todas elas na América Latina, por cima da qual passam, todos os dias, 17 milhões de dólares em commodities exportadas de Marabá e região para o mundo. Essa ponte é o símbolo do contraste que o Pará vive em si mesmo, já que detém alguns dos mais exuberantes indicadores de crescimento econômico e exportações de riquezas e, bem assim, os piores índices de desenvolvimento humano, em quaisquer critérios com que seja comparado.

Espero você para fazermos a missão do dia: desbravar Marabá. Você dorme demais e não vê o “progresso” passar. Eu cheguei junto com os primeiros operários contratados para fazer a reforma da ponte. Um deles, oriundo de um estado vizinho, me disse que tomou todas num balneário do núcleo São Félix no dia anterior. Estava de ressaca, mas de pé porque “emprego tá difícil” lá pelas bandas de onde veio.

Por aqui, o homem de 30 e poucos anos não tem do que reclamar. Há seis meses em Marabá, já chegou chegando: encontrou emprego, dinheiro, mulher, paixão e casa de graça para morar. Ele é um dos abençoados nas estatísticas que colocam Marabá como o melhor município paraense de 2017 para encontrar emprego. Na segunda-feira da semana passada, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) divulgou seu balanço mensal referente a junho, e Marabá brilha com a geração positiva de 631 oportunidades com carteira assinada — em Parauapebas, ex-grande empregador do estado, por exemplo, foram registradas 32 demissões. No acumulado do ano (de janeiro a junho), Marabá está no azul, com a criação de 1.019 postos de trabalho, uma verdadeira retomada do crescimento, que, infelizmente, não chega para todos.

Todavia, que ninguém se iluda: ainda há 47 mil desempregados em Marabá e 28 mil pessoas consideradas pobres, que tentam sobreviver com, no máximo, meio salário mínimo por mês.

 

TREM DA RIQUEZA 

Piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Lá vem o trem da Vale, cortando minha conversa com o operário, em seu barulho descomunal. A Vale, se você não sabe, é a empresa multinacional que mais se dá bem no Pará. A passagem do trem por Marabá, particularmente sobre a ponte rodoferroviária, é sempre triunfal, há 32 anos, desde que seu caminho, a Estrada de Ferro Carajás (EFC), foi inaugurado em 28 de fevereiro de 1985. Até pouco tempo, a EFC tinha 892 quilômetros, indo de Parauapebas a São Luís; com a inserção do ramal ferroviário em Canaã dos Carajás, passou a ter 997 quilômetros.

Quando a anaconda de ferro plana sobre o rio, a terra inteira treme. Aliás, nem mesmo a gigante ponte rodoferroviária dá conta de abarcar todo o trem da Vale, com seus 330 vagões e quase três quilômetros e meio de comprimento. Ao ocupar toda a estrutura de ferro, pelo menos um quilômetro de seu traseiro fica de fora, um atentado ao pudor a céu aberto. Aos olhos, a cena de perversão é retumbante: em velocidade de 40 quilômetros por hora (na ida, levando o minério), qualquer um demora exatamente três minutos e meio para ver o trem surgir e desaparecer.

O treme-terra carrega riquezas da região onde você e eu moramos e desfila alheio a um cenário desumano: ocupações irregulares, com habitações precárias, praticamente debaixo de onde trafegam os muito bilhões de dólares do Pará para o mundo.

NÚMEROS OBSCUROS

O volume exato da carga do trem é duvidoso. Na página 56 de seu “Relatório Anual 2016”, na seção “4.1.1 Ferrovias”, entregue ao mercado em abril deste ano, a Vale diz que a “EFC transportou diariamente em média 419 mil toneladas métricas de minério de ferro e 22,8 mil toneladas métricas de outras cargas”.  Se você multiplicar 419 mil pelos 366 dias do ano (2016 foi bissexto), verá que o volume de minério de ferro transportado pela empresa na região fora 153,35 milhões de toneladas (Mt).

Esse volume não bate com o que a imprensa soltou em fevereiro, alegando terem sido transportadas pela ferrovia 151,8 Mt de minério de ferro. E tampouco bate com o resultado de produção anual da empresa apresentado por ela mesma em 16 de fevereiro deste ano, em documento de 25 páginas, onde, na sexta folha, é discriminado o volume da produção física de minério de ferro em Carajás: 148,12 Mt.

Para o cidadão comum, no meio dessa chuva de números, os volumes apresentados entre um relatório e outro podem não fazer diferença. Mas basta lembrar que são mais de 5 Mt de minério de ferro em jogo, e isso, traduzido em cota-parte de royalties de mineração, daria mais de R$ 6 milhões à prefeitura do município de onde surge a diferença, entre outros impostos. E quem não quer R$ 6 milhões?

REALIDADE ÀS CLARAS

Já vai amanhecendo, e o núcleo São Félix se mostra. Essa parte de Marabá — que muita gente da própria cidade até pensa ser outra municipalidade — é a que mais cresce em termos populacionais. Em 1º de julho deste ano, Marabá chegou a 272,5 mil habitantes, dos quais 218 mil encontram-se em sua área urbana polinucleada espalhados por cinco complexos populacionais, a saber: Nova Marabá (82 mil residentes), Cidade Nova (76 mil), São Félix (32 mil), Marabá Pioneira e Morava Nova (ambos tecnicamente empatados com 14 mil moradores). No meio da desordem urbana, porém, o núcleo São Félix se destaca: saltou de 8,4 mil moradores em 2000 para 15,5 mil em 2010 e, de lá para cá, mais que dobrou sua população.

Surgido na década de 1960, o núcleo — que conhece bem e ouve o apito do trem da Vale a dois quilômetros de distância — era considerado uma espécie de escárnio pelos sucessivos prefeitos de Marabá. Era.

Depois que começou a ser povoado por ex-sem-teto alocados em programas habitacionais, naturalmente subiu o número de eleitores: eram dez mil em 2010 agora já totalizam 21 mil. E aí o poder público passou a olhar com mais atenção para o núcleo, que apenas este ano vai ganhar sua primeira agência bancária em mais de meio século de existência. Mas um banco, diga-se de passagem, é muito pouco para o potencial de consumo do São Félix: R$ 280 milhões à espera de mais agências, grandes supermercados, lojas de departamentos, entre outras conveniências.

Pode não parecer, mas está no núcleo São Félix um dos bairros com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Marabá e região, considerada a mesma estratificação utilizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para a elaboração da qualidade de vida das unidades intramunicipais.

O Bairro Novo Progresso, que cresce espremido entre vários residenciais populares, tem praticamente 100% de sua população alfabetizada e, em média, renda per capita superior a cinco salários mínimos. Pouquíssimos bairros na região sudeste do Pará alcançaram a proeza de combinar escolarização elevada com renda acima da média nacional num só casamento. Em Marabá, somente as folha 26, 30 e 32, o Bairro Novo Horizonte, a Agrópolis do Incra, as vilas militares e o Residencial Total Ville conseguem essa façanha, muitos, inclusive, com ilhas de prosperidade ao lado da precariedade do saneamento básico — há ruas de chão batido e com esgoto a céu aberto na supervalorizadíssima Folha 32 assim como no elitista Novo Horizonte, sem contar a legião de moradores de rua e pedintes que pairam nesses bairros.

Uma classe média cada vez mais crescente e discreta resolveu apostar e povoar o “lado de lá” da ponte, e com a chegada do banco — um de três que estão previstos para fincar o pé ali — o Novo Progresso pode se tornar centro comercial e de serviços do núcleo em pouco tempo.

 

TURISMO POR MARABÁ

Entre ponte e projetos que não vingam, vale de fome e lágrimas

Em São Félix, às 8 da manhã, pego coletivo rumo ao núcleo Morada Nova para iniciar percurso de lá até o Bairro Liberdade. Chego às 8h30 à parada final de Morada Nova. Desço e vou bater perna para ver o que encontro. Inicialmente, uma matilha de cães loucamente esfomeados e que não me foram muito simpáticos.

Morada Nova: demandas antigas

Morada Nova é um complexo formado pelo bairro-sede e outras quatro comunidades nominais ao seu redor. Com ares de cidadezinha bucólica, não se iluda: homicídios cabeludos já ocorreram — e ainda ocorrem — aqui. Tem um comércio ativo cuja população movimenta R$ 180 milhões dos R$ 3,6 bilhões de potencial de consumo atual de Marabá, calculados por uma consultoria nacional especializada em geomarketing.

Sua principal queixa é similar à de Marabá com relação ao Pará: o distanciamento do centro de decisão. Com muitas ruas de chão batido, nenhum hospital de médio porte e zero banco, Morada Nova sonha em se emancipar. De seu modesto centro comercial até a porta da Prefeitura de Marabá são 22 quilômetros, o que inviabiliza até de os moradores fazerem qualquer manifestação à porta do gabinete do prefeito Tião Miranda.

Mas há um detalhe nisso tudo: se Morada Nova pular fora do barco, Marabá vai perder uma parte valiosa dos processos de pesquisa que têm junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para desvendar suas riquezas ocultas no solo. É que, do “lado de lá” da ponte sobre o Rio Tocantins, na dobradinha São Félix e Morava Nova, há inúmeros depósitos de ouro, arsênio e diamante à espera de alguém para chamar de seu, além da proximidade do projeto Alumina Rondon, da Votorantim, do qual a área que pleiteia emancipar-se pode se beneficiar.

Deixo Morada Nova, em plena 10 horas da manhã, com sol a pino, e quase não dou conta de entrar no busão que trafega pela linha que vai até o Liberdade, tamanha a quantidade de gente me pisoteando. Estou acostumado com o trânsito caótico e o transporte público indigno de Marabá, só não imaginava que o movimento em Morada Nova estivesse tão grande.

Vinte e poucos minutos após, contemplo novamente a ponte. Dezenas de homens trabalhando na “generosidade” que a Vale está fazendo ao povo de Marabá. Tudo para que ninguém toque no assunto da necessidade de uma segunda ponte porque, definitivamente, com reforma ou sem da atual, ela já não dá mais conta de sustentar a mineração e a transumância que a utilizam diuturnamente, e isso se tornará evidente na próxima década — qualquer hora conto por que.

A multinacional sabe que duplicar a ponte é uma necessidade, mas ela enxerga apenas a de ferro. A rodoviária não é com ela, e o assunto é espinhoso. Portanto, ela não gosta de tocar nessa pauta para não se sentir acuada e intimidada a erguer outra obra de arte de mais de R$ 1 bilhão — quantia que ela retira sorrindo da região em minérios em pouquíssimos dias.

 

Nova Marabá: venhas esperanças

Na Nova Marabá, o cartão de visita são as ocupações irregulares. 50 metros de altura e 250 de distância separam a ponte da riqueza da cumeeira da casa paupérrima mais próxima, de uma multidão de imóveis que se ergueram de maneira amadora, desorganizada e sob condições habitacionais precárias às margens do grande rio, na Folha 8. É um favelão urbano que já conta com intensas atividades comercial (mercarias e botecos aos montes) e religiosa (igrejas para todos os gostos), unindo o sagrado e o profano num mesmo conjunto em que 1.600 pessoas ocupam tranquilamente.

Mas esse favelão não está sozinho: é mais um que prosperou, após o censo de 2010 ter contabilizado 11 favelas Marabá adentro e cerca de 29 mil habitantes em habitações precárias. Nesse mais recente, que começou a “bombar” em 2013, quase todos os domicílios têm meio de transporte particular (ou carro ou moto) e mesmo no teto das aparentes taperas — que parecem ter sido fincadas para o dono não perder o lote — há que se constar a existência de sofisticadas antenas de TV por assinatura, moradores com smatphones de última geração e outros luxos percebidos quando se passa à porta. A verdade é que a Nova Marabá tem R$ 1,05 bilhão de potencial de consumo e até seus subúrbios mostram estar dispostos a gastar fora de série.

Planejada para ter sua ordenação em forma de castanheira, a Nova, com suas famosas folhas (equivalentes a bairros), tornou-se uma selva urbana que concentra a maior parte dos 28 mil marabaenses considerados paupérrimos (favelados ou não) e que até passam fome. Grande parte dessa população reside, aliás, nas cercanias da Estrada de Ferro Carajás, palco de eterna queda de braço entre a mineradora Vale e moradores, os quais, de vez em quando, fazem o trem parar na marra na tentativa de legislar e fazer justiça em causa própria.

O quilométrico trem, que divide a Marabá de crescimento desordenado e a de crescimento econômico, percebe em suas passagens o complexo Nova Marabá assumir posição de principal centro comercial da cidade, ostentando dois shoppings (um deles à espera de acontecer), hipercenter e supermercados com porte de capital. Das 20 agências bancárias de Marabá, metade está na Nova, que pode ganhar mais uma em breve — outras seis agências estão no complexo Cidade Nova e quatro, na Marabá Pioneira, além da 21ª que está sendo parida São Félix.

As decisões que miram a Nova caminham premunindo estrategicamente grandes, caducas e lendárias obras de imenso impacto econômico em Marabá: o eterno derrocamento do pedral no Rio Tocantins e a fantasmagórica siderúrgica que seria da brasileira Vale, mas que agora ficou de ser de argelinos que estão vindo da Itália assessorados por sul-coreanos para se instalar no Brasil, um verdadeiro balaio de gato. Enquanto isso, o núcleo vai abrindo fronteiras comercialescas (e, ao mesmo tempo, sem querer querendo, favelísticas) na esperança de que tudo conspire a seu favor.

 

Velha Marabá: novos dilemas

Enquanto o centro comercial da Nova Marabá e a siderúrgica se resolvem, sigo de busão para a Marabá Pioneira (ou Velha Marabá, na linguagem popular). Bem engraçadinha, a Velha me mostrou um movimento “fake” nesta sexta, típico de todo verão: o povo invade o núcleo, mas não é para comprar, e sim para ir à orla pegar um barquinho e se mandar rumo à Praia do Tucunaré. Isso, evidentemente, deixa o complexo pioneiro bastante agitado.

Mas não se iluda: meu ônibus passou em frente a alguns estabelecimentos comerciais com placa de “Aluga-se” e “Vende-se”, o que denota a fragilidade a que ainda está exposto o comércio local, embora venha dando sinais clarividentes de reaquecimento. Só nesse núcleo, por exemplo, há um potencial de consumo estimado em R$ 250 milhões, a maior parte concentrada em famílias ricas e tradicionais que não deixam o núcleo pioneiro nem por decreto.

A Velha perdeu parte de seu brilho comercial para a Nova sobretudo pela falta de espaço para expandir-se, uma vez que a sua geografia sempre foi um obstante ao crescimento interior. As enchentes também fizeram boa parte da população migrar para outros complexos, freando o crescimento demográfico e o potencial de consumo natural. Destacada para ser muito mais centro histórico e de entretenimento que centro comercial, a Marabá Pioneira é, vez por outra, cenário de bangue-bangue moderno entre grupos criminosos que se ocultam em suas ruas estreitas. A violência e a força das águas — que até aninam no verão, mas sufocam no inverno — são seu grande entrevero. 

 

Cidade Nova: velhos problemas

E “simbora” para o Liberdade, no complexo Cidade Nova, dono de R$ 1 bilhão em potencial de consumo. Lá, certa vez, quase fui assassinado por engano, ao ser confundido por um usuário de drogas com um “pila” nas “quebradas” que nem eu sei onde ficam — e olha que conheço Marabá como a palma da minha mão a ponto de peregrinar por toda a área urbana fazendo pesquisa eleitoral autônoma ano passado.

Guardadas as devidas proporções, o Liberdade se assemelha a São Félix, só que, por ter área de expansão menor, é mais densamente povoado. Assim como na Velha, lá há muitos imóveis comerciais vagos. E o diferencial: muita pobreza atravessando do Liberdade para o Bairro Independência e em vários “Jardins”, onde as flores do progresso parecem ter murchado para dar lugar aos espinhos da fome.

Nos cafundós do complexo Cidade Nova, você encontra uma parcela das 7 mil crianças que passam fome em Marabá, de acordo com dados estratificados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Há quem duvide dos números, acumulados por sucessivas e irresponsáveis gestões, mais natimortas que a taxa de mortalidade infantil municipal; mas poucos se atrevem a sair do asfalto para conhecer a realidade nua, crua e catarrenta do lugar onde moram.

Se mesmo hoje, sete anos após o censo demográfico, fosse possível passar um cordão de isolamento entre ricos e pobres em Marabá, logo ficaria evidente por que razão o município ostentou todos os piores índices de qualidade de vida, entre as localidades com seu porte populacional, em 2010.

É latente a disparidade. E visível. Mansões escondidas nas cercanias do Liberdade e do Novo Horizonte, no complexo Cidade Nova, abrigam algumas das famílias mais ricas do interior paraense. Falo de milionários mesmo, com muitos “chifres” no pasto, não de pé rapado que tem meia dúzia de quitinetes e se sente “o” empresário. São ricaços que moram a alguns metros de ruas sem saneamento básico e onde vivem famílias inteiras na pindaíba, mas que não estão nem aí para poeira e para o diabo a quatro porque têm posses suficientes para voar por cima da poeira e ir jantar em Paris.

Pecado capital do acúmulo? Não. É apenas o retrato de uma realidade grosseira, cruel, indigesta, de poucos com muitíssimo e de muitos com quase nada e que, em Marabá, não seria diferente. Realidade que cresce na mesma velocidade com que perdemos nossas riquezas naturais, com a Vale abocanhando velozmente recursos minerais e ostentando recordes, ao passo que restam aos desafortunados a fome e um vale de lágrimas. Será que vai acabar um dia?

 

 

CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU

Riqueza de Marabá é dos gringos; nós chupamos o dedo

Se toda a riqueza produzida e exportada no primeiro semestre deste ano a partir de Marabá fosse repartida, não haveria um pobre sequer no município: a produção de riquezas exportadas por habitante seria de R$ 7.650 — ou 74.500 para cada um dos 28 mil pobres. Mas nem em seu pior pesadelo as empresas exportadoras repartiriam seus lucros com a população.

De Marabá saíram 655,48 bilhões de dólares (ou em moeda nacional R$ 2,09 bilhões) para o encontro dos gringos alemães (27%), poloneses (23,7%), suecos (13,4%), chineses (8%), indianos (7%), filipinos (6,9%), sul-coreanos (5%), outros e outros. Os gringos, que a verdade seja dita, nada adquiriram de graça: pagaram pelos produtos importados de Marabá.

O município é que ficou com muito pouco ou quase nada do que foi vendido em seu nome, mas sem sua assinatura formal. E tem sido assim há quase três décadas, desde que Marabá entrou para o rol dos exportadores nacionais no começo dos anos de 1990.

Atualmente, Marabá é exportador de vários produtos, que não apenas oriundos de mineração, como carnes, mas é indiscutivelmente a indústria extrativa mineral quem paga a maior parte de suas contas. Capital nacional do minério de cobre, o município é o 5º maior minerador do país. No entanto, dos R$ 2,16 bilhões que sua mineração movimentou este ano, apenas R$ 33,15 milhões (1,53%) ficaram efetivamente nos cofres da prefeitura local em compensação financeira, valor que é acrescido, também, por impostos diversos e aumenta.

PREFEITURA RIQUÍSSIMA

O prefeito atual, Tião Miranda, tem fama de “cabra trabaiador” e deverá saber gastar o dinheiro. Ele não pode negar que Marabá esteja sem dinheiro porque não cola e ninguém tem interesse nesse tipo de discurso. A população marabaense, acredita-se pelo resultado das urnas, já não aguentava mais quase uma década de sofrimento, justamente quando as finanças da prefeitura mais prosperaram, e por isso o trouxe de volta, passados oito anos de seu “até logo, Marabá”.

No ano em que Tião entregou a prefeitura, em 2008, a arrecadação havia sido de R$ 315,74 milhões. A coisa melhorou tanto de lá para cá, que Tião viu entrar no caixa muito mais que isso em apenas seis meses deste ano: R$ 366,1 milhões — ou seja, ele viu R$ 50 milhões a mais em relação a tudo o de melhor que já tinha visto antes.

Agora, é trabalhar com o dinheiro que tem e que muito mais terá. E, bem assim, aproveitar esse espírito caridoso da Vale, com relação à ponte, para conseguir mais, afinal, a empresa não está fazendo favor algum à sociedade por cima da qual ela passa todo dia, levantando poeira e carregando produtos da terra.

Tião não é bobo, mas não pode descuidar das 7 mil criancinhas que passam fome nos confins não conhecidos e não floridos de Marabá. São muitos jardins de tristeza para ele capinar e fazer florescer serviços sociais básicos e humanizados, em lugares praticamente hostis, onde o pranto baixo de alguém com fome é mais ensurdecedor que o barulho do trem.

 

André Santos

Cinco da manhã de sexta-feira (21). Desperto e sigo para a ponte rodoferroviária sobre o Rio Tocantins, a segunda maior do gênero no Brasil e a mais importante de todas elas na América Latina, por cima da qual passam, todos os dias, 17 milhões de dólares em commodities exportadas de Marabá e região para o mundo. Essa ponte é o símbolo do contraste que o Pará vive em si mesmo, já que detém alguns dos mais exuberantes indicadores de crescimento econômico e exportações de riquezas e, bem assim, os piores índices de desenvolvimento humano, em quaisquer critérios com que seja comparado.

Espero você para fazermos a missão do dia: desbravar Marabá. Você dorme demais e não vê o “progresso” passar. Eu cheguei junto com os primeiros operários contratados para fazer a reforma da ponte. Um deles, oriundo de um estado vizinho, me disse que tomou todas num balneário do núcleo São Félix no dia anterior. Estava de ressaca, mas de pé porque “emprego tá difícil” lá pelas bandas de onde veio.

Por aqui, o homem de 30 e poucos anos não tem do que reclamar. Há seis meses em Marabá, já chegou chegando: encontrou emprego, dinheiro, mulher, paixão e casa de graça para morar. Ele é um dos abençoados nas estatísticas que colocam Marabá como o melhor município paraense de 2017 para encontrar emprego. Na segunda-feira da semana passada, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) divulgou seu balanço mensal referente a junho, e Marabá brilha com a geração positiva de 631 oportunidades com carteira assinada — em Parauapebas, ex-grande empregador do estado, por exemplo, foram registradas 32 demissões. No acumulado do ano (de janeiro a junho), Marabá está no azul, com a criação de 1.019 postos de trabalho, uma verdadeira retomada do crescimento, que, infelizmente, não chega para todos.

Todavia, que ninguém se iluda: ainda há 47 mil desempregados em Marabá e 28 mil pessoas consideradas pobres, que tentam sobreviver com, no máximo, meio salário mínimo por mês.

 

TREM DA RIQUEZA 

Piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Lá vem o trem da Vale, cortando minha conversa com o operário, em seu barulho descomunal. A Vale, se você não sabe, é a empresa multinacional que mais se dá bem no Pará. A passagem do trem por Marabá, particularmente sobre a ponte rodoferroviária, é sempre triunfal, há 32 anos, desde que seu caminho, a Estrada de Ferro Carajás (EFC), foi inaugurado em 28 de fevereiro de 1985. Até pouco tempo, a EFC tinha 892 quilômetros, indo de Parauapebas a São Luís; com a inserção do ramal ferroviário em Canaã dos Carajás, passou a ter 997 quilômetros.

Quando a anaconda de ferro plana sobre o rio, a terra inteira treme. Aliás, nem mesmo a gigante ponte rodoferroviária dá conta de abarcar todo o trem da Vale, com seus 330 vagões e quase três quilômetros e meio de comprimento. Ao ocupar toda a estrutura de ferro, pelo menos um quilômetro de seu traseiro fica de fora, um atentado ao pudor a céu aberto. Aos olhos, a cena de perversão é retumbante: em velocidade de 40 quilômetros por hora (na ida, levando o minério), qualquer um demora exatamente três minutos e meio para ver o trem surgir e desaparecer.

O treme-terra carrega riquezas da região onde você e eu moramos e desfila alheio a um cenário desumano: ocupações irregulares, com habitações precárias, praticamente debaixo de onde trafegam os muito bilhões de dólares do Pará para o mundo.

NÚMEROS OBSCUROS

O volume exato da carga do trem é duvidoso. Na página 56 de seu “Relatório Anual 2016”, na seção “4.1.1 Ferrovias”, entregue ao mercado em abril deste ano, a Vale diz que a “EFC transportou diariamente em média 419 mil toneladas métricas de minério de ferro e 22,8 mil toneladas métricas de outras cargas”.  Se você multiplicar 419 mil pelos 366 dias do ano (2016 foi bissexto), verá que o volume de minério de ferro transportado pela empresa na região fora 153,35 milhões de toneladas (Mt).

Esse volume não bate com o que a imprensa soltou em fevereiro, alegando terem sido transportadas pela ferrovia 151,8 Mt de minério de ferro. E tampouco bate com o resultado de produção anual da empresa apresentado por ela mesma em 16 de fevereiro deste ano, em documento de 25 páginas, onde, na sexta folha, é discriminado o volume da produção física de minério de ferro em Carajás: 148,12 Mt.

Para o cidadão comum, no meio dessa chuva de números, os volumes apresentados entre um relatório e outro podem não fazer diferença. Mas basta lembrar que são mais de 5 Mt de minério de ferro em jogo, e isso, traduzido em cota-parte de royalties de mineração, daria mais de R$ 6 milhões à prefeitura do município de onde surge a diferença, entre outros impostos. E quem não quer R$ 6 milhões?

REALIDADE ÀS CLARAS

Já vai amanhecendo, e o núcleo São Félix se mostra. Essa parte de Marabá — que muita gente da própria cidade até pensa ser outra municipalidade — é a que mais cresce em termos populacionais. Em 1º de julho deste ano, Marabá chegou a 272,5 mil habitantes, dos quais 218 mil encontram-se em sua área urbana polinucleada espalhados por cinco complexos populacionais, a saber: Nova Marabá (82 mil residentes), Cidade Nova (76 mil), São Félix (32 mil), Marabá Pioneira e Morava Nova (ambos tecnicamente empatados com 14 mil moradores). No meio da desordem urbana, porém, o núcleo São Félix se destaca: saltou de 8,4 mil moradores em 2000 para 15,5 mil em 2010 e, de lá para cá, mais que dobrou sua população.

Surgido na década de 1960, o núcleo — que conhece bem e ouve o apito do trem da Vale a dois quilômetros de distância — era considerado uma espécie de escárnio pelos sucessivos prefeitos de Marabá. Era.

Depois que começou a ser povoado por ex-sem-teto alocados em programas habitacionais, naturalmente subiu o número de eleitores: eram dez mil em 2010 agora já totalizam 21 mil. E aí o poder público passou a olhar com mais atenção para o núcleo, que apenas este ano vai ganhar sua primeira agência bancária em mais de meio século de existência. Mas um banco, diga-se de passagem, é muito pouco para o potencial de consumo do São Félix: R$ 280 milhões à espera de mais agências, grandes supermercados, lojas de departamentos, entre outras conveniências.

Pode não parecer, mas está no núcleo São Félix um dos bairros com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Marabá e região, considerada a mesma estratificação utilizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para a elaboração da qualidade de vida das unidades intramunicipais.

O Bairro Novo Progresso, que cresce espremido entre vários residenciais populares, tem praticamente 100% de sua população alfabetizada e, em média, renda per capita superior a cinco salários mínimos. Pouquíssimos bairros na região sudeste do Pará alcançaram a proeza de combinar escolarização elevada com renda acima da média nacional num só casamento. Em Marabá, somente as folha 26, 30 e 32, o Bairro Novo Horizonte, a Agrópolis do Incra, as vilas militares e o Residencial Total Ville conseguem essa façanha, muitos, inclusive, com ilhas de prosperidade ao lado da precariedade do saneamento básico — há ruas de chão batido e com esgoto a céu aberto na supervalorizadíssima Folha 32 assim como no elitista Novo Horizonte, sem contar a legião de moradores de rua e pedintes que pairam nesses bairros.

Uma classe média cada vez mais crescente e discreta resolveu apostar e povoar o “lado de lá” da ponte, e com a chegada do banco — um de três que estão previstos para fincar o pé ali — o Novo Progresso pode se tornar centro comercial e de serviços do núcleo em pouco tempo.

 

TURISMO POR MARABÁ

Entre ponte e projetos que não vingam, vale de fome e lágrimas

Em São Félix, às 8 da manhã, pego coletivo rumo ao núcleo Morada Nova para iniciar percurso de lá até o Bairro Liberdade. Chego às 8h30 à parada final de Morada Nova. Desço e vou bater perna para ver o que encontro. Inicialmente, uma matilha de cães loucamente esfomeados e que não me foram muito simpáticos.

Morada Nova: demandas antigas

Morada Nova é um complexo formado pelo bairro-sede e outras quatro comunidades nominais ao seu redor. Com ares de cidadezinha bucólica, não se iluda: homicídios cabeludos já ocorreram — e ainda ocorrem — aqui. Tem um comércio ativo cuja população movimenta R$ 180 milhões dos R$ 3,6 bilhões de potencial de consumo atual de Marabá, calculados por uma consultoria nacional especializada em geomarketing.

Sua principal queixa é similar à de Marabá com relação ao Pará: o distanciamento do centro de decisão. Com muitas ruas de chão batido, nenhum hospital de médio porte e zero banco, Morada Nova sonha em se emancipar. De seu modesto centro comercial até a porta da Prefeitura de Marabá são 22 quilômetros, o que inviabiliza até de os moradores fazerem qualquer manifestação à porta do gabinete do prefeito Tião Miranda.

Mas há um detalhe nisso tudo: se Morada Nova pular fora do barco, Marabá vai perder uma parte valiosa dos processos de pesquisa que têm junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para desvendar suas riquezas ocultas no solo. É que, do “lado de lá” da ponte sobre o Rio Tocantins, na dobradinha São Félix e Morava Nova, há inúmeros depósitos de ouro, arsênio e diamante à espera de alguém para chamar de seu, além da proximidade do projeto Alumina Rondon, da Votorantim, do qual a área que pleiteia emancipar-se pode se beneficiar.

Deixo Morada Nova, em plena 10 horas da manhã, com sol a pino, e quase não dou conta de entrar no busão que trafega pela linha que vai até o Liberdade, tamanha a quantidade de gente me pisoteando. Estou acostumado com o trânsito caótico e o transporte público indigno de Marabá, só não imaginava que o movimento em Morada Nova estivesse tão grande.

Vinte e poucos minutos após, contemplo novamente a ponte. Dezenas de homens trabalhando na “generosidade” que a Vale está fazendo ao povo de Marabá. Tudo para que ninguém toque no assunto da necessidade de uma segunda ponte porque, definitivamente, com reforma ou sem da atual, ela já não dá mais conta de sustentar a mineração e a transumância que a utilizam diuturnamente, e isso se tornará evidente na próxima década — qualquer hora conto por que.

A multinacional sabe que duplicar a ponte é uma necessidade, mas ela enxerga apenas a de ferro. A rodoviária não é com ela, e o assunto é espinhoso. Portanto, ela não gosta de tocar nessa pauta para não se sentir acuada e intimidada a erguer outra obra de arte de mais de R$ 1 bilhão — quantia que ela retira sorrindo da região em minérios em pouquíssimos dias.

 

Nova Marabá: venhas esperanças

Na Nova Marabá, o cartão de visita são as ocupações irregulares. 50 metros de altura e 250 de distância separam a ponte da riqueza da cumeeira da casa paupérrima mais próxima, de uma multidão de imóveis que se ergueram de maneira amadora, desorganizada e sob condições habitacionais precárias às margens do grande rio, na Folha 8. É um favelão urbano que já conta com intensas atividades comercial (mercarias e botecos aos montes) e religiosa (igrejas para todos os gostos), unindo o sagrado e o profano num mesmo conjunto em que 1.600 pessoas ocupam tranquilamente.

Mas esse favelão não está sozinho: é mais um que prosperou, após o censo de 2010 ter contabilizado 11 favelas Marabá adentro e cerca de 29 mil habitantes em habitações precárias. Nesse mais recente, que começou a “bombar” em 2013, quase todos os domicílios têm meio de transporte particular (ou carro ou moto) e mesmo no teto das aparentes taperas — que parecem ter sido fincadas para o dono não perder o lote — há que se constar a existência de sofisticadas antenas de TV por assinatura, moradores com smatphones de última geração e outros luxos percebidos quando se passa à porta. A verdade é que a Nova Marabá tem R$ 1,05 bilhão de potencial de consumo e até seus subúrbios mostram estar dispostos a gastar fora de série.

Planejada para ter sua ordenação em forma de castanheira, a Nova, com suas famosas folhas (equivalentes a bairros), tornou-se uma selva urbana que concentra a maior parte dos 28 mil marabaenses considerados paupérrimos (favelados ou não) e que até passam fome. Grande parte dessa população reside, aliás, nas cercanias da Estrada de Ferro Carajás, palco de eterna queda de braço entre a mineradora Vale e moradores, os quais, de vez em quando, fazem o trem parar na marra na tentativa de legislar e fazer justiça em causa própria.

O quilométrico trem, que divide a Marabá de crescimento desordenado e a de crescimento econômico, percebe em suas passagens o complexo Nova Marabá assumir posição de principal centro comercial da cidade, ostentando dois shoppings (um deles à espera de acontecer), hipercenter e supermercados com porte de capital. Das 20 agências bancárias de Marabá, metade está na Nova, que pode ganhar mais uma em breve — outras seis agências estão no complexo Cidade Nova e quatro, na Marabá Pioneira, além da 21ª que está sendo parida São Félix.

As decisões que miram a Nova caminham premunindo estrategicamente grandes, caducas e lendárias obras de imenso impacto econômico em Marabá: o eterno derrocamento do pedral no Rio Tocantins e a fantasmagórica siderúrgica que seria da brasileira Vale, mas que agora ficou de ser de argelinos que estão vindo da Itália assessorados por sul-coreanos para se instalar no Brasil, um verdadeiro balaio de gato. Enquanto isso, o núcleo vai abrindo fronteiras comercialescas (e, ao mesmo tempo, sem querer querendo, favelísticas) na esperança de que tudo conspire a seu favor.

 

Velha Marabá: novos dilemas

Enquanto o centro comercial da Nova Marabá e a siderúrgica se resolvem, sigo de busão para a Marabá Pioneira (ou Velha Marabá, na linguagem popular). Bem engraçadinha, a Velha me mostrou um movimento “fake” nesta sexta, típico de todo verão: o povo invade o núcleo, mas não é para comprar, e sim para ir à orla pegar um barquinho e se mandar rumo à Praia do Tucunaré. Isso, evidentemente, deixa o complexo pioneiro bastante agitado.

Mas não se iluda: meu ônibus passou em frente a alguns estabelecimentos comerciais com placa de “Aluga-se” e “Vende-se”, o que denota a fragilidade a que ainda está exposto o comércio local, embora venha dando sinais clarividentes de reaquecimento. Só nesse núcleo, por exemplo, há um potencial de consumo estimado em R$ 250 milhões, a maior parte concentrada em famílias ricas e tradicionais que não deixam o núcleo pioneiro nem por decreto.

A Velha perdeu parte de seu brilho comercial para a Nova sobretudo pela falta de espaço para expandir-se, uma vez que a sua geografia sempre foi um obstante ao crescimento interior. As enchentes também fizeram boa parte da população migrar para outros complexos, freando o crescimento demográfico e o potencial de consumo natural. Destacada para ser muito mais centro histórico e de entretenimento que centro comercial, a Marabá Pioneira é, vez por outra, cenário de bangue-bangue moderno entre grupos criminosos que se ocultam em suas ruas estreitas. A violência e a força das águas — que até aninam no verão, mas sufocam no inverno — são seu grande entrevero. 

 

Cidade Nova: velhos problemas

E “simbora” para o Liberdade, no complexo Cidade Nova, dono de R$ 1 bilhão em potencial de consumo. Lá, certa vez, quase fui assassinado por engano, ao ser confundido por um usuário de drogas com um “pila” nas “quebradas” que nem eu sei onde ficam — e olha que conheço Marabá como a palma da minha mão a ponto de peregrinar por toda a área urbana fazendo pesquisa eleitoral autônoma ano passado.

Guardadas as devidas proporções, o Liberdade se assemelha a São Félix, só que, por ter área de expansão menor, é mais densamente povoado. Assim como na Velha, lá há muitos imóveis comerciais vagos. E o diferencial: muita pobreza atravessando do Liberdade para o Bairro Independência e em vários “Jardins”, onde as flores do progresso parecem ter murchado para dar lugar aos espinhos da fome.

Nos cafundós do complexo Cidade Nova, você encontra uma parcela das 7 mil crianças que passam fome em Marabá, de acordo com dados estratificados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Há quem duvide dos números, acumulados por sucessivas e irresponsáveis gestões, mais natimortas que a taxa de mortalidade infantil municipal; mas poucos se atrevem a sair do asfalto para conhecer a realidade nua, crua e catarrenta do lugar onde moram.

Se mesmo hoje, sete anos após o censo demográfico, fosse possível passar um cordão de isolamento entre ricos e pobres em Marabá, logo ficaria evidente por que razão o município ostentou todos os piores índices de qualidade de vida, entre as localidades com seu porte populacional, em 2010.

É latente a disparidade. E visível. Mansões escondidas nas cercanias do Liberdade e do Novo Horizonte, no complexo Cidade Nova, abrigam algumas das famílias mais ricas do interior paraense. Falo de milionários mesmo, com muitos “chifres” no pasto, não de pé rapado que tem meia dúzia de quitinetes e se sente “o” empresário. São ricaços que moram a alguns metros de ruas sem saneamento básico e onde vivem famílias inteiras na pindaíba, mas que não estão nem aí para poeira e para o diabo a quatro porque têm posses suficientes para voar por cima da poeira e ir jantar em Paris.

Pecado capital do acúmulo? Não. É apenas o retrato de uma realidade grosseira, cruel, indigesta, de poucos com muitíssimo e de muitos com quase nada e que, em Marabá, não seria diferente. Realidade que cresce na mesma velocidade com que perdemos nossas riquezas naturais, com a Vale abocanhando velozmente recursos minerais e ostentando recordes, ao passo que restam aos desafortunados a fome e um vale de lágrimas. Será que vai acabar um dia?

 

 

CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU

Riqueza de Marabá é dos gringos; nós chupamos o dedo

Se toda a riqueza produzida e exportada no primeiro semestre deste ano a partir de Marabá fosse repartida, não haveria um pobre sequer no município: a produção de riquezas exportadas por habitante seria de R$ 7.650 — ou 74.500 para cada um dos 28 mil pobres. Mas nem em seu pior pesadelo as empresas exportadoras repartiriam seus lucros com a população.

De Marabá saíram 655,48 bilhões de dólares (ou em moeda nacional R$ 2,09 bilhões) para o encontro dos gringos alemães (27%), poloneses (23,7%), suecos (13,4%), chineses (8%), indianos (7%), filipinos (6,9%), sul-coreanos (5%), outros e outros. Os gringos, que a verdade seja dita, nada adquiriram de graça: pagaram pelos produtos importados de Marabá.

O município é que ficou com muito pouco ou quase nada do que foi vendido em seu nome, mas sem sua assinatura formal. E tem sido assim há quase três décadas, desde que Marabá entrou para o rol dos exportadores nacionais no começo dos anos de 1990.

Atualmente, Marabá é exportador de vários produtos, que não apenas oriundos de mineração, como carnes, mas é indiscutivelmente a indústria extrativa mineral quem paga a maior parte de suas contas. Capital nacional do minério de cobre, o município é o 5º maior minerador do país. No entanto, dos R$ 2,16 bilhões que sua mineração movimentou este ano, apenas R$ 33,15 milhões (1,53%) ficaram efetivamente nos cofres da prefeitura local em compensação financeira, valor que é acrescido, também, por impostos diversos e aumenta.

PREFEITURA RIQUÍSSIMA

O prefeito atual, Tião Miranda, tem fama de “cabra trabaiador” e deverá saber gastar o dinheiro. Ele não pode negar que Marabá esteja sem dinheiro porque não cola e ninguém tem interesse nesse tipo de discurso. A população marabaense, acredita-se pelo resultado das urnas, já não aguentava mais quase uma década de sofrimento, justamente quando as finanças da prefeitura mais prosperaram, e por isso o trouxe de volta, passados oito anos de seu “até logo, Marabá”.

No ano em que Tião entregou a prefeitura, em 2008, a arrecadação havia sido de R$ 315,74 milhões. A coisa melhorou tanto de lá para cá, que Tião viu entrar no caixa muito mais que isso em apenas seis meses deste ano: R$ 366,1 milhões — ou seja, ele viu R$ 50 milhões a mais em relação a tudo o de melhor que já tinha visto antes.

Agora, é trabalhar com o dinheiro que tem e que muito mais terá. E, bem assim, aproveitar esse espírito caridoso da Vale, com relação à ponte, para conseguir mais, afinal, a empresa não está fazendo favor algum à sociedade por cima da qual ela passa todo dia, levantando poeira e carregando produtos da terra.

Tião não é bobo, mas não pode descuidar das 7 mil criancinhas que passam fome nos confins não conhecidos e não floridos de Marabá. São muitos jardins de tristeza para ele capinar e fazer florescer serviços sociais básicos e humanizados, em lugares praticamente hostis, onde o pranto baixo de alguém com fome é mais ensurdecedor que o barulho do trem.