Correio de Carajás

Marabá dos fantasmas famintos da pandemia

“Na pandemia, há vozes que gemem nos hospitais, há outras que choram do lado de fora, à espera de boas notícias. Há vozes que clamam com fome à espera de Madre Tereza ou outro ajudador. E a sua voz, vai emudecer?”

Trabalho numa mesa no canto da imensa sala da Redação do Portal Correio de Carajás. Do lado esquerdo, a cerca de três metros, Lucas, o revisor, se acomoda em outra mesa. Sempre foi o mais cuidadoso, entre nós, com os protocolos para não pegar covid-19. Pegou, assim como a mãe. Ambos estão internados no HMM, enquanto o pai está em situação delicada em UTI do Regional.

Do lado de dentro dos hospitais há essa luta pela vida. Do lado de fora, muitos marabaenses batalham, de forma silenciosa, contra a fome. E não são poucos. Quem quiser saber basta começa a se preocupar em ajudar, ouvindo histórias daqui e dali e saberá a quantidade de panelas vazias.

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No último sábado fui intimado por minha nora, a quem apelidamos carinhosamente de Madre Tereza de Marabá. Ela queria entregar cestas de alimentos para seis famílias que tinham necessidades urgentes e me deu um ultimato. Gabriela é uma das responsáveis pelo um departamento de Ação Social da Igreja Adventista em que congrega, na Folha 21. Identificaram que ela era humana e gostava de ajudar.

Um entregador comum de cestas de alimentos chega à casa das pessoas, entrega, faz uma oração e vai embora. Gabriela precisa ouvir histórias. São interrogações sobre a vida, sobre necessidades, sobre afetividades, numa jornada para compreender o simples: o humano.

Numa dessas casas, na Folha 23, ouviu de uma jovem mãe o quanto aquela cesta de alimentos – que custa menos de R$ 100,00 – a ajudaria, assim como a filha e o marido. Em pé na sala pequena, contou um pouco de sua vida, de como precisou parar de trabalhar vendendo cartelas de jogos por causa das restrições na semana anterior. Que o marido havia acabado de arranjar emprego em uma lavanderia e que a filha, de apenas 5 anos, havia sido levada naquele dia para a casa de uma amiga, já que na deles não tinha o que comer.

Na hora da despedida, não deixou Gabriela ir embora sem um abraço. Esqueceu-se dos protocolos de covid-19, agarrou no pescoço de Madre Tereza e chorou. E agradeceu de novo.

E depois desta, vieram outras casas com histórias diferentes, mas todas famintas de comida, de ajuda, de uma palavra para renovar o sonho dos entrincheirados dentro de casa.

Para cada pessoa, Gabriela explica que os alimentos são doados por pessoas de vários lugares, além de colaboração da Unicef, que envia produtos de limpeza. Lágrimas descem em cada casa e a frase “foi Deus quem enviou você” é comum em todas elas.

Em duas décadas e meia de jornalismo, já participei de várias campanhas para ajudar famílias carentes. Mas nada se compara a estes tempos, em que os pobres estão cada vez mais pobres, clamando por ajuda.

De domingo até a noite desta quarta-feira, dia 6 de abril, quando estou redigindo esse texto, me peguei várias vezes ouvindo a voz daquela jovem mãe dizendo que havia mandado a filha para a casa de uma amiga comer, porque ela não tinha o que oferecer.

A voz vem enquanto acordo, como, trabalho, cozinho, teclo, entrevisto, entro no Instagram, leio jornais de várias partes do País, ou mesmo quanto me assusto com o zap, vou ao banheiro, como chocolate, lembro de minha mãe e passo noites mal dormidas com uma insônia intransigente.

Não escrevo para exaltar minha nora, mas para dizer ela faz parte de um povo que está sendo ponte para os outros, porque não está fácil. A morte e a fome chegaram na sala de jantar e acuaram todo mundo.

Na pandemia, há vozes que gemem nos hospitais, há outras que choram do lado de fora, à espera de boas notícias. Há vozes que clamam com fome à espera de Madre Tereza ou outro ajudador. E a sua voz, vai emudecer?

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira