Correio de Carajás

Marabá cansou de ser ela e não tem mais enchente

Marabá cansou de ser ela. Não tem mais enchente. As águas não tomam mais as ruas da Liberdade, do Amapá, da Santa Rosa. Os barcos deixaram de ser estacionados nas portas das casas e as varandas que antes viravam trapiches agora só acumulam poeira. A cidade cansou de ser ela. Ou talvez, foi o tempo quem se cansou da cidade.

As cheias do Tocantins e do Itacaiunas sempre foram personagens ilustres das histórias contadas nas rodas de conversa, nos alpendres, nas praças, nos jornais e nas televisões. Eram as águas que anunciavam a força do inverno amazônico, que empurravam as crianças para as casas de parentes, que transformavam as escolas em abrigos e os colchões em jangadas de sobrevivência. Cada cheia deixava sua assinatura nos muros, uma marca lamacenta do quanto subiu — e do quanto levou.

Mas agora, os rios parecem ter desaprendido o caminho da cheia. Já não sobem mais como antigamente. A temporada das chuvas perdeu a força, como um velho trovão engasgado. A cidade, antes fluida e líquida na sua relação com os rios, agora se vê estática, assustada diante de sua nova paisagem. Marabá secou. Não de tudo, mas o suficiente para causar espanto.

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É verdade: para muitas famílias pobres, isso é um alívio. Não precisar sair de casa por dois ou três meses, não depender de lona doada, de cesta básica improvisada, de abrigo coletivo com goteira. Não precisar voltar depois para recuperar o que restou, enfrentar mofo, paredes rachadas, móveis boiando. A casa, ao menos, continua sendo casa. E isso, para quem vive no fio da sobrevivência, é bênção.

Só que o que parece solução para alguns, é prenúncio de tragédia para muitos. Sem chuva, os peixes se escondem — ou simplesmente desaparecem. A farinha fica mais cara, a castanha-do-pará mais escassa, a água dos igarapés mais turva e imprestável. Os barreiros secam, as lavouras minguam, e até a mineração, que tanto lucra com os veios da terra, sente o peso de um lençol freático em agonia. A sede se espalha em forma de poeira. E se antes as famílias tinham medo de água demais, agora temem a falta.

O paradoxo se impõe: era melhor com enchente? Ou é melhor sem ela?

É nessa encruzilhada que Marabá aguarda a chegada da COP 30, marcada para acontecer aqui mesmo, no Pará, bem debaixo da sombra da floresta e da tensão dos grandes rios. Virão chefes de Estado, ambientalistas de gravata, câmeras de TV e promessas bem-intencionadas. Vão dizer que estão preocupados, que algo precisa ser feito, que o planeta pede socorro. E estarão certos. Mas é difícil acreditar que alguma resolução de cúpula será capaz de devolver o pulso às águas de Marabá.

A cidade precisa reaprender a ser ela. A Velha Marabá, por incrível que pareça, não reclamava da enchente. Era a estação da mudança, do improviso, da resiliência. Era o tempo de reinventar a casa, de navegar na rotina, de conhecer os vizinhos que ajudavam a carregar tralhas para terrenos mais altos. Era o jeito antigo de existir à margem — mas sem se afastar da essência ribeirinha.

E pensar que, em 1980, Marabá viveu a maior enchente de sua história. A água invadiu tudo, como se os rios quisessem engolir a cidade. Foi um trauma coletivo — mas também uma prova de força. Famílias inteiras foram removidas, e mesmo assim, como num instinto antigo, a cidade resistiu. Foi reconstruída com a ajuda dos próprios moradores, doações que vinham de longe e da fé inabalável de quem nunca desiste de onde veio.

Agora, sem enchente, o povo precisa aprender a viver sem o que por muito tempo foi parte de sua identidade. Sem o balanço das águas, sem o susto das cheias, sem o ritmo dos rios. Uma cidade que não é mais como era. Que se esvazia daquilo que a preenchia, mas ainda não sabe com o que ocupar esse vazio.

Marabá cansou de ser ela. E, no silêncio do verão que não termina, parece perguntar: quem serei agora?

Porque, sem enchente, sobra a urgência de se reinventar. Mas nem sempre a gente está pronto para isso.

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.