Correio de Carajás

Manual de instruções para respeitar Davi

Na casa da Rua 3, no bairro Belo Horizonte, o verão de Marabá tem nome e sobrenome: BTU por metro quadrado. Quem batiza é o Davi, dez anos, olhos que vasculham o teto antes de encarar a gente e um sorriso tímido que acende quando o assunto é ar-condicionado. Ele conhece as marcas como quem recita escuderia de time: Springer Midea, LG, Samsung, Gree, Elgin, Daikin, Fujitsu, Consul, Philco, Electrolux, Carrier. Sabe o que é serpentina de cobre, compressor inverter, selo Procel A e até quantos decibéis cabem no sono da mãe. Quando alguém pergunta “quantos BTUs?”, ele não responde: entrega uma aula.

Davi é autista nível de suporte 2. Precisa de mais ajuda para navegar o mundo que ruge alto demais. Às vezes balança as mãos, como quem areja os pensamentos; outras, cola os dedos no ouvido, espantando buzinas e falatórios. Gosta de rotina no relógio, de promessas cumpridas, de palavras que não mudeiam. E tem um hiperfoco que se pendura no teto: controles remotos. Passa minutos, que parecem segundos para ele, assistindo no TikTok e YouTube às funções que encantam: “swing”, “sleep”, “turbo”, “timer”, “ionizer”, “eco”. Se deixar, ele mede a cidade por BTUs e memoriza manuais com a mesma devoção com que outras crianças colam figurinhas.

Os pais, Raimundo e Carla, aprenderam a regular o vento. “Quinze de vídeo, quinze de tarefa”, diz a mãe, segurando um quadro com cartões visuais: matemática, leitura, pausa, água, um passeio rápido até a janela para sentir o Respirando respirando. Quando o barulho da rua esquenta, entra o abafador de som, e o mundo desliga um tantinho. O pai, que jura ter nascido no modo “ventilar”, negocia: “Hoje é inglês; depois, você me explica por que a Daikin gasta menos energia”. Davi concorda, alinhando os controles numa fila: o da sala, o do quarto, o de catálogo que ele mesmo montou com papelão e cola.

Leia mais:

Na escola pública do Núcleo Cidade Nova, a professora Sal percebeu cedo que o refrigerado podia ser ponte. Na primeira semana, Davi mal levantava os olhos; na segunda, ela trouxe um termômetro de parede e um gráfico simples. “Vamos transformar calor em conta?”, propôs. A turma riu, curiosa. Davi apontou, fez silêncio com o próprio corpo, inspirou como quem puxa ar da serpentina, e explicou: “Se o cômodo tem 12 metros quadrados, precisa de 9.000 BTUs. Mas se bate sol da tarde, aumenta 600 por pessoa”. A sala, de repente, virou laboratório.

Com o interesse dele, Sal cruzou disciplinas como quem regula as aletas do “swing”: em português, Davi escreveu uma resenha de manual, sem floreio, com precisão de instalação em 220V; em matemática, somaram frações com consumo mensal e desconto do selo A; em ciências, falaram de termodinâmica, evaporação, condensação, o ar que cansa e o que alivia; em geografia, mapearam as fábricas e os portos que brincam de vai-e-vem com as caixas de papelão. E, num dia de vento bom, ele apresentou para a turma os diferentes “bips” de cada marca: o da LG mais curto, o da Samsung um pouquinho mais grave. Não era música, mas era canção.

Nem tudo corre em “modo sleep”. Mudanças repentinas, uma prova adiantada, o pique-esconde no corredor, um ventilador enguiçado, podem derrubar Davi do prumo. Quando isso acontece, Sal aciona o “timer do afeto”: oferece um canto silencioso, uma respiração guiada, a lembrança de que o recreio tem hora de voltar. Os colegas, que antes estranhavam o jeito literal do menino e sua pouca vontade de trocar figurinhas, hoje o convocam para “testar o ar da biblioteca”. Descobriram que amizade também tem regulagem: aproxima-se, esfria o preconceito, aquece a paciência.

Em casa, a vida segue com legenda. A mãe deixa bilhetes no caminho: “Hoje: tarefa + vídeo + passeio curto na Orla”. O pai, na volta do trabalho, entrega a Davi uma missão: “Verifica se o filtro da sala precisa de limpeza”. Ele cumpre com gravidade de técnico autorizado, desmonta a grelha, aponta o pó como quem encontra um enigma, e termina satisfeito: “Agora vai consumir menos”. Nesses momentos, a família inteira respira um ar mais leve, de quem entendeu que acolher não é desligar o hiperfoco, mas ajustar a temperatura do mundo para que caiba um menino.

Marabá sempre foi uma cidade de calor e rio. Davi a mede em graus e sons: o estalo do “bip” às 7h, o ronronar baixinho do compressor quando a noite acalma, o vento que entra da janela na Cidade Nova e bagunça o cabelo dele num afago. Enquanto isso, a professora segue inventando caminhos: feira de ciências com maquete de ciclo do ar, ditado com palavras de manual, redação sobre conforto térmico nos bairros. Quem diria: o controle remoto virou chave de portal.

No fim das contas, o que Davi nos ensina não cabe no manual. A cidade gosta de apertar botões para acelerar a vida, mas o menino nos lembra de observar o led aceso de cada pessoa. Respeitar a individualidade dele é aceitar que há jeitos diferentes de sentir o mesmo calor, que há gente que precisa de rotina, de silêncio e de um assunto preferido para abrir a janela do coração. Se você cruzar com Davi na rua e ele falar de BTUs sem te encarar muito, não se espante: é só o jeito dele de dizer “olá”. E, quem sabe, de ligar dentro da gente um modo “eco” de ver o outro, mais atento, mais gentil, mais humano.

 

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.