Ontem, quarta-feira, 10 de julho, minha mãe completou 81 anos de idade. Minha irmã, Raquel Pompeu, veio de Sampa para celebrar a nova idade. Fizemos festa familiar. Sua memória está se definhando, enquanto o físico merece medalha de ouro.
Fui sorteado quando nasci em família de cinco irmãos (outros dois morreram no parto). Cada um mais diferente que o outro, mas os melhores pivetes da Travessa Lauro Sodré: um menino e quatro meninas, sem contar dois primos que foram criados por nossa mãe porque a deles morreu vítima de um raio que caiu em sua casa em uma noite de tempestade em um casebre de madeira no bairro Amapá. E ainda um tio temporão que mamãe terminou de criar porque vovó morreu cedo também, acometida de um câncer.
Nasci em 1970 quando minha mãe, Maria José Salazar, estava enfraquecida por uma malária que ganhou lá pelas bandas do Cinzento, no beiradão do Rio Itacaiúnas. E pequeno, quando olhava para a cicatriz das cesarianas de mamãe, sentia pena por ter parido tanto. Eram muitas crianças para oferecer colo e comida todo dia, o dia todo.
Leia mais:E ainda hoje é legal ser criança ao lado de outras quatro já crescidas. Duas brancas, três morenas, sendo um com feição de índio e cabelo veio já embranquecido pela tinta da natureza. Nada contra quem tem apenas um rebento, e os tempos são outros, mas tenho a impressão que ser filhote único é meio chato no ninho. Pai e mãe, com as melhores das intenções, acabam atalhando demais as travessias.
Como fui feliz na infância, tudo que ainda acontece por lá, é motivo de risadas. As alegrias e as tristezas, a saúde e as outras duas malárias que peguei, as aulas que matei, as travessuras, as brincadeiras e as pisas de pé no pescoço…
Em casa de oito irmãos, onde a pindaíba passeava de tamanco, o Dia da Criança era bom e ruim. Fabuloso porque se sonhava em dobro, elevado à quinta, a semana inteira. Havia, por exemplo, uma metralhadora da Estrela que todo menino queria possuir. Era verde, enorme, fazia barulho repetido e ainda acendia uma luz vermelha. Éramos bélicos, sim. E imaginávamos brincando entre os restos de cidades, capacete verde, granada e falando inglês com uma voz em português.
Mas a metralhadora nunca veio. Se mamãe desse para um, os outros dois (primos) iam chorar porque não haviam ganhado igual. Dizer a verdade, dinheiro era pouco pra comprar uma “besteira” tão cara. Então era inventar: cortar um pedaço de pau, pregar um prego e fazer a zoada das rajadas de tiros na boca. As goiabas maduras e podres eram as balas.
Ser filho único era quase certeza de ter os melhores presentes da rua e comer sempre a quantidade que quisesse, se empanturrar. No meio de oito bocas, quase nunca se comia a coxa da galinha ou um bife sozinho. Tudo era dividido, contado, calculado.
Lembro que quando a família estava completa em casa, com papai, mamãe, tio Manoel Fernandes, os primos, nós, os cinco irmãos e outros agregados, o jeito era eu, José Wilson e Juarez sentarmos no chão ao redor de uma bacia de alumínio cheia de arroz, feijão e alguns pedaços de carne. Enquanto tinha carne havia pressa no mastigar para pegar o próximo pedaço antes do rival. Quando a carne acabava, a gente passava a comer devagar e até dava tempo de brincar de fazer um capitão (bolo de comida feito com a mão).
No vestuário, o que era de um, poderia ser aproveitado para o outro no ano seguinte. A camisa da farda, as meias que não tinham dono único, as cuecas, as prisilhas de minhas irmãs, as sandálias.
Cada tempo é um tempo, uma janela da história. Óbvio. Quando pivete, confesso, queria ter ganhado a metralhadora, uma bicicleta para cada irmão, um jeep de pedal, uma boneca Amiguinha para minha irmã mais nova, uma nave e o robô do Perdidos no Espaço…
Não hei de reclamar do que não ganhei. Tive uma rua inteira para correr, árvores para subir e me balançar, tardes pra bater uma pelada no Granito, um rio de pescar, pegar jacumã e tomar banho, cachorros vira-latas, bicho-de-pé, beijos, carro-de-lata, varjão, gatos de muro pra jogar pedra, safadezas, calangos, vagalumes, ninhos, chuva pra se banhar…
* O autor é jornalista do CORREIO há 28 anos e escreve crônicas às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.