Correio de Carajás

Indígenas relatam abandono e medo durante pandemia

“Ninguém sabe, na verdade, como essa doença chegou até nós. A gente tava de quarentena, a gente tava acompanhando na televisão, acompanhando nos jornais as informações. Não tivemos palestra antes com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e com nenhum outro tipo de órgão sobre a pandemia. Tivemos consciência porque a gente tava assistindo televisão e a gente começou a fazer prevenção”, relata Kátia Silene Costa, cacique da Aldeia Akrãtikatêjê, dos Gavião da Montanha, localizada na Terra Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins, sudeste do Pará.

Mesmo tomando cuidado e com as portas fechadas para os não indígenas há aproximadamente 60 dias, quando a pandemia chegou à região, nesta quarta-feira (20) o povo gavião contabilizava mais de 20 pessoas com sintomas de covid-19 no território, além de algumas testadas positivamente, em uma população de aproximadamente 900 indígenas.

Katia conta que antes dos indígenas serem infectados não houve qualquer orientação. “Não recebemos nenhum tipo de álcool gel, nem máscaras, não vi interesse nenhum sobre o povo indígena vindo da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e nem quanto à (mineradora) Vale, que é uma grande empresa e tem um casamento com o povo Gavião, assim como Eletronorte e DNIT, que passam empreendimentos dentro da TI Mãe Maria”, diz. Além de não receberem material de proteção, os indígenas ainda se sentem culpabilizados pelo órgão de saúde e por uma das empresas.

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“A gente foi até criticada pelo próprio chefe da Sesai e algum funcionário da Vale que disse que a gente tá desse jeito porque quer, que a gente foi avisada, que a gente sabia. Ninguém pediu pra adoecer. Ninguém pediu pro vírus chegar até aqui. Somos vítimas como todo mundo, como eles também. Fizemos de tudo pra se proteger, nós somos um povo que fechamos a porta pro branco. Não sabemos como chegou até as comunidades, mas chegou. A gente fechou pros brancos, mas pros parentes de dentro da comunidade não fechamos a porta”, declarou.

Concita Sompré, da Aldeia Kyikatejê, confirma a informação de que não houve apoio externo às famílias da comunidade e diz que indígenas chegaram a telefonar para a Sesai quando os primeiros sintomas apareceram. Eles haviam acabado de passar por imunização para H1N1 e ouviram que aquilo que estavam sentindo era resultado da vacina. Alguns dias depois, apareceu um teste positivado, feito pelo município de Bom Jesus.

Conforme ela, entre os infectados e suspeitos, três anciãos sofrem com os sintomas e um, inclusive, está entubado em um hospital privado de Marabá. Ela critica, além das empresas, a Secretaria Municipal de Bom Jesus do Tocantins, que só passou a acompanhá-los após procurarem Ministério Público e entidades que os apoiassem.

“No início de março, assim que começaram os casos de Marabá, Bom Jesus montou uma barreira da Vigilância Sanitária na entrada do km 40, da Vila São Raimundo. Parece que nós, povos indígenas, não fazemos parte desse município. Se o prefeito estava preocupado com a população de Bom Jesus e da Vila São Raimundo, por que que não se preocupou com as aldeias? Por que que essa vigilância não foi colocada no início da Ponte do Flecheira, que faz divisa entre Morada Nova e Bom Jesus? Aí fazia um monitoramento não só da cidade, mas das comunidades indígenas também. Nós ficamos totalmente desguarnecidos e à mercê da sorte”, declara.

Atualmente, diz, uma equipe de técnicos em enfermagem 100% indígena, da Sesai, acompanha as famílias orientando e fazendo as visitas nas casas, mas isso começou depois que começaram a surgir os primeiros casos. “Antes a orientação era só pra não ir pra cidade e quando fosse usar máscara”, sustenta.

Ainda conforme o relato, o órgão de saúde indígena tem apenas dois médicos para atender 28 aldeias da região, inclusive as 19 da TI Mãe Maria. “Eu vejo um grande descaso do poder público com relação aos povos Indígenas, não queremos ser melhores que ninguém, mas quando se trata de comunidades indígenas não temos imunidade pra tá enfrentando uma pandemia dessas. Há casos passados em que comunidades quase inteiras foram dizimadas, é urgente o olhar para as comunidades indígenas”, defende.

APOIO

Diante desta situação, a Rede de Apoio Mútuo Indígena do Sudeste do Pará provocou entidades de Marabá a protocolarem junto ao Ministério Público Federal (MPF), em Marabá, ofício requerendo aumento das medidas de proteção aos indígenas em relação à pandemia de Covid-19. O documento foi direcionado ao procurador federal Alexandre Aparizi nesta terça-feira (19).

As entidades que assinam o ofício lembram que 13 povos indígenas com população estimada em 5 mil pessoas vivem nessa região: Guajajara; Atikun; Xikrin; Assurini; Amanaye; Kayapó; Parakanã; Guarani-Mbya; Anambé; Parkatêjê; Kyikatêjê; Akrãkaprekti; e Aikewara.

A rede pede atendimento médico especializado aos casos já comprovados e sintomáticos de Covid-19 em todas as aldeias da região com o aumento imediato do efetivo da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Requer, também, a montagem de infraestrutura adequada ao atendimento de baixa, média e alta complexidade aos povos indígenas e testagem de toda a população no sentido de ajudar a conter o avanço da pandemia nas aldeias.

Solicita fornecimento de materiais de higiene e de proteção para todos os povos indígenas e de alimentação e auxílio emergencial à população indígena necessitada. Por fim, as entidades querem o monitoramento adequado e transparente sobre a situação da covid-19 dentro das aldeias e que o MPF avalie a possibilidade de uma ação civil pública para apurar eventual negligência ou omissão do poder público no atendimento aos povos indígenas.

O documento ressalta que a pandemia é uma nova ameaça mortal aos povos e que já há casos confirmados junto aos Parkatêgê e Akrãtikatêjê, da Terra Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins; entre os Xikrin Mebengokre, da Terra Indígena Cateté, em Parauapebas; entre os Assurini do Tocantins, na Terra Indígena Trocará, em Tucuruí; e relatos de suspeitas de casos entre os Surui Aikewara, na Terra Indígena Sororó, em São Geraldo do Araguaia, os Guajajara da Aldeia Guajanaíra, em Itupiranga, e os Kayapó Mebengokre, da Terra Indígena Kayapó, em Ourilândia do Norte.

Há grande preocupação de que o vírus possa rapidamente se alastrar junto aos outros povos e territórios, mesmo com os cuidados de isolamento social que cada aldeia vem implementando. “A estrutura atual (saúde) é incapaz de atender a demanda destes povos indígenas que necessitam de atendimento médico urgente e diferenciado. Não há testes suficientes e materiais de higiene, proteção e prevenção”, diz o documento, destacando que o sistema de saúde indígena da região vem recebendo cada vez menos investimentos”, diz o documento.

As entidades relembram que historicamente os povos indígenas da região sofrem com avanço sobre os territórios por atividades econômicas como a pecuária e a extração de madeira e minério, além da construção de rodovias e hidrelétricas.

No último mês, o MPF expediu recomendação à Fundação Nacional do Índio (Funai) para que fossem tomadas medidas urgentes com o objetivo de evitar que indígenas no Pará tivessem que deixar as moradias e se deslocar até as cidades durante a pandemia de covid-19 para comprar itens essenciais à manutenção da vida. Foram recomendadas, ainda, medidas para impedir a entrada de não indígenas nas aldeias.

Os responsáveis por protocolarem o ofício destacam que não houve qualquer ação concreta dentro do prazo estabelecido pela procuradoria, vencido em 4 de maio, o que motivou a ação da Rede de Apoio Mútuo Indígena do Sudeste do Pará.

Assinam o documento o Conselho Indigenista Missionário Comissão Pastoral da Terra de Marabá, a Rede Eclesial Pan-Amazônica – Comitê Marabá-PA, a Diocese de Marabá, a Universidade do Estado do Pará (Uepa), o Campus de Marabá da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), e o Campus Marabá Rural do Instituto Federal do Pará (IFPA).

ISOLAMENTO

Na comunidade administrada por Katia os indígenas continuam proibindo a entrada de não indígenas, inclusive daqueles que prestam serviços a eles. Até agora, diz a cacique, eles não receberam materiais para prevenção, embora vejam as empresas que têm interesse nas terras deles fazendo doações fora dali.  

“Essas empresas grandes que passam dentro do nosso território deviam montar uma tenda ou um mini posto de atendimento para que atendessem às comunidades, principalmente dentro da TI, para que o povo não tenha que sair pra ir fazer atendimento aí fora, que o risco só aumenta, é isso que eles tem que fazer”, diz, acrescentando que nem mesmo testes rápidos chegaram até eles.

“A gente vê em propaganda que tão fazendo hospitais, que tão investindo em testes rápidos, por que esses testes rápidos não chegam até nós? Por que que eles não doam? Essas empresas grandes que passam aqui dentro? Não tô falando só de Vale, tô falando da Eletronorte, do DNIT, da Equatorial que passam aqui dentro nesse momento. É um momento de solidariedade. Vamos dar a mão, né? Somos impactados com vários empreendimentos e não somos assistidos na hora que é pra ser assistido, principalmente na área da saúde. (…) estamos muito revoltados com a situação, somos impactados com vários empreendimentos, mas nessa hora de pandemia, hora de ajudar o outro, nós estamos vulneráveis, sem apoio”, diz Katia.

A aldeia onde vive Concita adotou rígido isolamento social interno. “A gente parou com as atividades de caça, de pesca, de mata, de brincadeira ou de visitar os parentes”. Para ela, a ajuda deve vir “antes tarde do que nunca” para que os indígenas não corram o risco de serem dizimados, como já ocorreu em outras eras. “Estamos pedindo, implorando, para que comprem testes rápidos para as comunidades indígenas. Não estamos rejeitando ajuda, mas faço essa crítica. Bom Jesus deixou as comunidades a mercê do vírus e a Sesai não se preparou.

Por fim, destaca preocupação em relação à saúde menta do povo. “Casos psicológicos já estão começando a aparecer nas comunidades, principalmente na minha. Temos visto muito medo, as pessoas muito retraídas, chorando. Tem gente que tá com medo de perder a família, então tá tendo um impacto pacto psicológico. O isolamento nas comunidades indígenas impacta de forma drástica porque nós não temos o hábito de ficar isolado dentro da comunidade, não temos o hábito de ser visita na casa da mãe, de ser visita na casa do avô, no final de semana, é cotidiano, é todo dia, é todo horário, as brincadeiras são comunitárias, tudo é comunitário”, afirma.

POSICIONAMENTO

O Portal Correio de Carajás entrou em contato com a assessoria de comunicação a Vale que encaminhou nota afirmando que “com o objetivo de intensificar o apoio aos povos indígenas e outras comunidades tradicionais (pescadores e quilombolas) onde está inserida, a Vale, em conjunto com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e autoridades sanitárias, tem adotado uma série de medidas para ajudar a combater a covid-19”.

O posicionamento acrescenta que como medida preventiva, em Marabá, a Vale está “contribuindo com o desenvolvimento de plano de enfrentamento à Covid-19 do Distrito Especial de Saúde Indígena do município (Ministério da Saúde), inclusive com a doação de testes rápidos, beneficiando 2.100 pessoas no município”.

A Reportagem procurou, também, as demais empresas e órgãos citados, mas não conseguiu contato. (Luciana Marschall)