Correio de Carajás

Histórias afetivas do último barqueiro dos castanhais

Corredeiras e sinuosidade (curvas). Essas são as duas principais características do Rio Itacaiunas, que impulsionou a economia de Marabá nos dois primeiros ciclos: primeiro do caucho e depois da castanha-do-pará. E permaneceu assim até o final da década de 1970.

E para navegar no Itacaiunas o piloto precisa destreza e experiência, conhecer os grotões, remansos, canais, as 377 ilhas da Cachoeira Caranha. Muitos pilotos afundaram barcos, perderam toda a mercadoria que transportavam. Mesmo os experientes cometiam, em algum momento, erro e tudo ia para o fundo numa cachoeira e havia até mesmo vítimas fatais.

Praticamente todos os pilotos dos tempos dos castanhais já descansaram. A maior referência nos dias atuais e que trabalhou “baixando castanha” é José Carlos Martins, conhecido apenas como Zé Carlos, hoje com mais de 54 anos de idade.

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É filho do saudoso Erasmo Pinto, que tinha castanhal no Igarapé Costa, afluente do Tapirapé, que por sua vez é afluente do Itacaiunas. Em uma só safra, durante o inverno, Pinto chegava a vender 2 mil hectolitros de castanha (cada hectolítro corresponde a 100 litros com casca). Arregimentava homens, que coletavam os ouriços na floresta, retiravam a castanha e transportavam para a margem do igarapé, onde um batelão passava e levava tudo para o rio maior, no caso, o Tapirapé.  De lá, o um barco maior trazia a castanha para Marabá, onde era vendida para os grandes atravessadores.

Zé Carlos nasceu em Goiás, mas aos 4 anos de idade mudou-se com a família para Marabá. Cresceu equilibrando-se no passeio dos barcos do pai e aos 12 já ajudava a pilotar barco. O pai queria que ele estudasse, mas conseguiu enrolar e fazer o tempo passar, porque queria curtir a liberdade e as belezas do beiradão. “Ele me motivava para os estudos, mas eu queria continuar no movimento do banzeiro do rio, cortando as águas do Rio Itacaiunas. Eu pegava malária, depois ficava bom e ia para outro lugar, não parava”, recorda.

Zé conta que não teve uma vida de festas e cresceu focado no trabalho, ao lado do pai.  No final da década de 1980, quando a castanha já tinha sucumbido, ele passou a transportar cargas de madeira no leito do rio.

Também relembra da enchente de 1980, quando toda a mudança dos flagelados era feita por barcos, porque não havia ponte e o “trevo” da Velha Marabá inundava e os carros não conseguiam chegar aos desabrigados. “Toda aquela população precisava ir para o recente núcleo Cidade Nova ou Nova Marabá, que eram mais altos. Era um vai-e-vem de barcos fazendo paco-paco que não tinha fim”.

Ainda com relação à enchente, José Carlos narra que um comerciante local morreu de tão abalado que ficou quando a água invadiu seu estabelecimento. “Ele tinha muita mercadoria naquele tempo, era como se fosse um Mateus nos dias atuais, e morreu por conta do prejuízo que teve”, conta.

Recorda, ainda que, antes de a ponte sobre o Rio Itacaiunas ser inaugurada, no início da década de 1980, o primeiro veículo a trafegar por ela foi um caminhão carregado de madeira pesada para testar a resistência dela. “Foi um caminhão com muitas toras, bem pesado, para ver se a ponte aguentava”.

Depois disso, acabaram as travessias de barco da Marabá Pioneira para o Amapá, mudando o foco dos barcos para o trajeto do Porto das Canoinhas para o cais do Tocantins (hoje orla), para a travessia à Praia do Tucunaré, que então já começava a dar sinais de uma nova atração turística na cidade.

José Carlos relembra, ainda o ciclo do ouro em Serra Pelada, mas diz, com tristeza, que não pôde ir até o garimpo por ainda ser um adolescente de 16 para 17 anos de idade. “Alguns que bamburravam pegavam o dinheiro, amarrava no cordão e saía puxando. Isso aconteceu mesmo. Para reconhecer alguém, tem que dar dinheiro para saber como essa pessoa se comporta”, ensina, com um leve sorriso de canto de boca.

Mesmo tendo passado todos esses ciclos econômicos, Zé Carlos continua acreditando no potencial dos rios que banham Marabá. Ele mantém um barco grande, o Estrela D’alva, com o qual atravessa veranistas para a Praia do Tucunaré no verão e, ocasionalmente, quando é solicitado, faz incursões de vários dias no Itacaiunas, rio que conhece como a palma da sua mão.

Ele participou, inclusive, da expedição chefiada pelo biólogo Noé von Atzingen da foz até a nascente do Itacaiunas, há cerca de cinco anos. Foi escolhido por ser um dos pilotos mais experientes da bacia deste rio. “Se quando a cidade era pequena a gente já gosta de morar aqui, quanto mais agora, com todo esse progresso. É impossível não querer viver aqui até o último suspiro. Eu quero ser enterrado em Marabá, não desejo ser levado para nenhum outro lugar. Esta é minha cidade preciosa, que vi crescer com a minha própria lente”, declara.