Cássio já tinha sido um homem sadio. Quando mais novo, claro. Mas o tempo passou e os exageros na vida social e na íntima cobraram uma conta cara e indigesta. Tinha experimentado de tudo na vida, inclusive dormir pelado em frente ao Mercado Municipal, que anos depois se transformaria em uma biblioteca.
E tinha, também, muitas outras extravagâncias que lhe tiraram o emprego de vigilante do Cartório Eleitoral de Marabá. Um dia, ele
Cássio era de uma família relativamente abastada em Marabá. O desemprego o fez recorrer ao pai, que resolveu lhe dar um barco para atravessar passageiros para a Praia do Tucunaré. E como os tempos eram bons no início da década de 1990, ele ganhou um bom dinheiro nos verões seguintes. Foi de lá que conseguiu dinheiro para formar dois filhos, pagar o curso técnico da esposa e, também, construir um quartinho nos fundos do quintal para que a filha, de 13 anos, tivesse privacidade.
Leia mais:A hemorroida surgiu na sua vida em uma noite, depois de passar o final de semana inteiro no boteco do Zé Melé.
Começou a pensar na, finitude, assim que se assentou para o banho quente na bacia em que cabia apenas o redondo disforme do busanfã. As hemorroidas comiam-lhe o juízo e o humor. E foi ao céu três vezes, porque não percebeu que a água ainda fervia. O entremeio do fiofó, rosado, transformou-se em uma cabeça de pimenta vermelha. Era como se tivesse nascido um botão de rosa encarnada (com espinhos) entre duas dunas ardidas de sol infindo… Como doía!
E como latejava! Estava perto do fim, resmungava baixo no banheiro trancafiado. Nu, entalado feito um paxá, só parava pra pensar na vida quando a crise das hemorróidas se asseverava. E ali, doído, emendava uma reflexão emocional e exagerada atrás da outra. A começar por quando avistava o bucho, flácido e descomunal. Na pressa dos dias que ia vivendo, de qualquer jeito, ainda se imaginava magro. Barriga de tábua, lá dos 20 e poucos anos.
Mas há na vida duas coisas cruéis que, um dia, lhe fizeram ver o real. Espelho e uma crise de varizes das veias anorretais. Inevitavelmente, servem para repassar o tempo. E como não sabemos lidar com ele, “ele ri”. Zomba e espera por esses dias terríveis, em que se costuma vestir os trajes de um Jó. Lamúrias. E aí, ele (o tempo) bate à porta…
Zomba porque sabe passar e nós não sabemos. Desesperar, por causa de uma crise no fiofó e achar que o mundo estava por um fio? Não ia deixar de comer o que a médica recomendou prudência. Nunca. Aliás, a ida à médica é uma história à parte. A proctologista sabia da vida íntima (sim, porque hemorróida é intimidade) de meio mundo da cidade miúda.
E por ser jeitosa, um amigo a recomendava pra outro. Dedos finos, mãos de seda. Discretíssima. Ela e a atendente. Uma senhora forte (negrona) que virava o rosto, sustentava uma cortina estampada de flores e, feito uma aeromoça, sussurrava as instruções.
“O senhor, por favor, arreie as calças e a cueca até o joelho. Deixe o corpo de ladinho e traga as nádegas um pouco pra fora da cama”. Hummm, tá inflamadinho! Mas nada que uma bisnaga de Erva de Bicho, ou Proctly, e banhos de assento não resolvam. A única coisa chata era a sala de espera. Um olhando para o outro e no desconforto da poltrona calorenta de couro preto. Inadequada.
Si, não deixaria de comer o vatapá apimentado com a pimenta amarelinha. Não deixaria de fazer chover o molho de malagueta na panelada gorda. Pimenta-do-Reino! Comeria de colher e, na feijoada, pimenta-fantasma da Índia. Beberia cachaça, banana e farofa, sim. Ora, e o tempo? Que se roesse de inveja. Ele (e as hemorroidas) passariam. E o tempo, não. Ficaria a arrodear as pessoas. Feito carcereiro. Aprisionante.
*O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira