📅 Publicado em 14/10/2025 15h51✏️ Atualizado em 14/10/2025 16h19
A notícia chegou como fruta passada no cesto da manhã: de repente, o cheiro muda, a cor entristece, a feira silencia por dentro. Nós, que aprendemos a atravessar a Folha 28 com o faro do costume, o mamão na maturação certa, a manga que “chora” açúcar, a banana para o bolo da tarde, fomos surpreendidos pela palavra que ninguém quer ouvir cedo: morreu.
Na manhã desta terça-feira, a Loira da nossa rotina, Ranes Dean de Lima, 47 anos, fechou os olhos após um acidente de moto. E a cidade, que parece tão acostumada a ganhar novos moradores, perdeu hoje uma das mãos que nos serviam fruta e conversa em partes iguais.
Nós a conhecemos primeiro como frutaria sem nome, quando a vida ainda era um espaço apertado na mini rotatória da Folha 28. Sua irmã Michele Oliveira ergueu uma loja ao lado. As duas eram chamadas de Loiras, mas a rivalidade se acentuou quando ergueram um negócio próprio, cada uma, num terreno da família, na Folha 31, em frente onde Tião Miranda levou grande parte da feira. Ficavam lado a lado disputando cliente de forma silenciosa.
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Rivalidade é palavra que amadurece rápido: uma tardezinha e as duas já não se falavam. Então Ranes, prática como quem pesa no olho, acrescentou uma casca a mais na placa de sua loja: Frutaria da Loira – a Original. Nós, fregueses fiéis, rimos do trocadilho e seguimos. Na dúvida, a nossa Loira era aquela do cumprimento primeiro, do “vai levar qual hoje?”, das perguntas furtivas que abriam espaço para a vida antes da venda.
As irmãs repaginaram o negócio, subiram prateleira, foram virando mercadinho sem perder o cheiro de feira. Dez colaboradores de cada lado, entregue o peito de família aos balcões. A verdade é que não eram duas, mas três Loiras no mapa desta cidade: Tiana vendeu o ponto para Ranes e virou funcionária dela, e nós aprendemos que há dias em que o sangue não cabe dentro de sobrenomes.
Há quatro gerações, a família de dona Vitória, em Imperatriz, mediu sustento em frutarias; Íris, a filha, levou o ofício adiante; as netas — Ranes, Michele e Tiana vieram para Marabá e espalharam cor na antiga feira da 28. A herança não foi só o jeito de escolher fruta: foi o de escolher gente.
Eu tenho minhas manias. Às vezes, implicava com preço ausente na gôndola. E Ranes, ao contrário da vizinha, nunca torceu o nariz. Mandava colocar etiqueta, sem irritação, como quem entende que a compra também é um diálogo. Mesmo com vendedores, ela saía de trás do caixa para abordar cliente por cliente: “é pra comer hoje ou amanhã?”, “vai ser suco ou salada?”, “posso trocar essa por outra mais firme?”. A gente saía de lá ajustado por dentro, como balança zerada depois da tara.
Hoje, o mundo pendurado das redes sociais virou mural de luto. Mais de 900 comentários, 5 mil curtidas até as 14h no Instagram do Correio de Carajás, números que não explicam coisa alguma, mas dizem que a cidade quis abraçar um pouco da família que nos deu fruta e conversa por tantos anos. Porque, no fim, o que a gente leva da banca não é só abacaxi e cheiro-verde: é o modo de ser atendido, a confiança de que alguém cuidou da nossa escolha antes de nós.
Penso em Kenedy e Letícia, os filhos de Ranes, que já dividiam a lida com a mãe e agora herdam a missão de quatro gerações. Penso em Michele e Tiana, no tipo de rivalidade que só vendedores de feira e irmãos entendem: uma esquina que separa, outra que junta. Talvez o destino cobre da família a conta que a cidade não pode pagar por eles: reconciliar o que der e manter de pé o que sempre sustentou o negócio: o bom atendimento.
Nós, que preferíamos “a Original”, não fazemos juiz de placa. Preferimos lembrar a cena mais simples: Ranes atravessando o corredor com um pedaço de abacaxi na mão, a pontinha da faca afiada para provar, o gesto de quem serve antes de vender. O sol da VP-8 pegando oblíquo nas mangas, o barulho dos carros, a gente ali escolhendo o jantar como quem escolhe lembrança.
Se a vida é feira, hoje faltou uma barraca. E nos resta pedir que, amanhã, quando abrirem as portas, alguém estique a lona, zerar a balança, arrumar a banca com o mesmo cuidado de sempre e devolva à cidade a lição que Ranes nos deixou: tratar cada cliente pelo nome, cada fruta pelo tempo, cada manhã como recomeço.
Que Kenedy e Letícia – e todos os braços que ficaram – mantenham a doçura do atendimento como marca da casa. E que nós, fregueses, sigamos valorizando o ofício de quem alimenta a cidade com alimentos e afeto.
Porque a Loira se foi, mas o jeito original de servir não pode ir junto. É o legado que a saudade nos entrega, pesado e justo, como uma boa compra que a gente leva no braço e no coração.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras. Excepcionalmente hoje, em memória a uma fornecedora de frutas.
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.