Correio de Carajás

Entre caneta de escrever e a de insulina na bolsa

Suzane descobriu o açúcar cedo demais. Não aquele dos potes da cozinha ou dos carrinhos de picolé que riscam a Velha Marabá, mas o açúcar que mora no sangue e se acha dono do corpo. Ainda bebê, recebeu o carimbo: diabetes tipo 1. Desde então, recebe três picadas por dia para manter o compasso.

Aos 13, Suzane já sabe o atalho entre o estojo e a caneta de insulina. Sabe contar carboidrato como quem mede a distância entre a sala e a quadra da Escola Geraldo Veloso. Enquanto as colegas combinam sorvete depois da aula, ela troca o desejo por água gelada. “Tá tudo bem”, repete.

Há duas semanas, quando a amiga do peito recebeu o diagnóstico de câncer no sangue, o chão tremeu. Suzane sentou à mesa, ajeitou o caderno de capa roxa e escreveu uma carta. Era para dizer o que dói e o que dá força. Não parecia discurso de adulto; tinha cheiro de caneta nova.

Leia mais:

“Amiga”, ela começou, “eu também tenho um bicho que quer mandar em mim. Ele sussurra: ‘come isso, dorme aquilo, esquece a quadra’. Eu respondo com três agulhas por dia e risadas no intervalo. Dói um pouco, mas não me manda. Quando eu nasci, disseram que eu seria diferente. Eu decidi ser diferente jogando futsal com os meninos.”

A carta atravessou a semana como barco no Rio Tocantins. Dentro, Suzane contou das vezes que queria um picolé de cupuaçu e, no lugar, escolheu a conversa com a vendedora, que também tinha uma filha com restrições. Falou do medo de furar o dedo na frente de todo mundo e da coragem de explicar para a turma que aquilo era só um exame. “Se alguém perguntar do seu tratamento”, escreveu, “diga: ‘é meu manual de voo’. Tem dia que a decolagem sacode, mas a vista compensa.”

Entre uma linha e outra, vazou o sonho: “Quero um dia marcar um gol na final dos Jogos Internos. Já treinei chute com o Carlos Alberto, que me emprestou uma bola num sábado. Eu corro com cuidado, mas corro. Se eu fizer gol, a gente comemora com música e eu tomo suco sem açúcar, mas com gargalhada.”

Quem lê pensa que Suzane não sente. Sente sim. Tem noite em que a casa dorme e ela vigia o glicosímetro. Tem manhã em que a mão falha e a palavra “para sempre” pesa. Nesses dias, ela inventa rituais: fita amarela no cabelo, um bilhete “continua”, tênis no pé. A quadra entende.

Dois dias depois, o telefone tocou. A amiga, voz tímida de quem entrou num labirinto novo, agradeceu. Disse que colou a carta na parede do quarto do hospital e que o corredor ficou menos longo. Houve silêncio, e dentro dele cabia o mundo inteiro!

Na escola, a vida retomou seus barulhos: a chamada da primeira aula, o buzinaço da avenida, a bola batendo no muro. Suzane ficou no canto, preparou a insulina e foi para a quadra. Os meninos arregalaram os olhos quando ela pediu para entrar no rachão. Ninguém negou. A bola veio mascada, ela dominou na ponta do tênis, avançou. Sentiu o corpo conversar com o açúcar do sangue e, por um segundo, falar a mesma língua: equilíbrio.

O chute saiu baixo e beijou a trave. Não foi gol, mas foi mapa! Suzane sorriu para o quase, porque às vezes é o quase que empurra a gente. No recreio, quando os picolés passaram cantando, ela não disse “não posso”. Disse “hoje não quero”. É diferente. O verbo também cura.

Se esta história procurasse um auditório, escolheria uma arquibancada de adolescentes e, também, de adultos. Para eles, Suzane deixaria lições pequenas: primeiro, que as coisas difíceis cabem em rotinas curtas, contar até dez, respirar, medir, aplicar e seguir. Segundo, que a coragem gosta de companhia; por isso, segure a mão de alguém, nem que seja por chamada de vídeo. Terceiro, que o sonho precisa de treino: ninguém marca gol sem aparecer na quadra.

E por fim, que nenhuma condição define sozinha quem a gente é. Define o que fazemos com ela. Suzane não toma sorvete, mas coleciona tardes de vento no rosto, bolas quase-caindo no gol, cartas que viram ponte. Marabá continua quente, a vida continua remando, e ela segue, risonha e agulhada, tatuando no dia a palavra que escolheu: continuidade com fé e coragem.

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.