Correio de Carajás

Do Melhoral infantil ao terror da Benzetacil

Quando o peito da menina piava, era certeza de crise asmática. Só faltava morrer sem fôlego. ”Forgo”. Encostava o umbigo na espinha das costas, tentando puxar o ar. Abanavam ou a balançavam na rede da sala da televisão, não havia ventilador. Basculantes e portas abertas. O problema é que o aperreio, muitas vezes, invadia a noite avançada. Lá, em algum lugar dos derradeiros anos da década de 70, as coisas eram difíceis.

Farmácias existiam poucas, talvez por isso, no banheiro ou nas despensas das casas, existissem farmarcinhas pregadas nas paredes. Geralmente brancas com uma cruz vermelha no meio. Tinha do Melhoral infantil, doce como bombom, a injeções da temida Benzetacil. Terror da pivetada.

Pois muito bem, a asma vinha com tudo na madrugada e não havia farmácia aberta. Na Velha Marabá, a que ficava mais tempo, fechava às 22 horas. Farmácia Minerva, perto do Juvenal de Carvalho. Ainda arriscava estar faltando o Aerolin spray ou Revenil expectorante. Passasse da hora, o jeito era correr à casa de dona Zeca e de Eduardo Bezerra, na Farmácia Santa Luzia. Única que virava a noite, metia-se a cara na janelinha. Minto. Eles não abriam para qualquer um. Tinha de ter relação de amizade.

Leia mais:

Outro galho à vista. Como Marabá não era uma cidade 24 horas, as coisas pro canelau ficavam mais enlinhadas. Quem não morava no Centro ou na Praça Duque de Caxias tava pebado. Não adiantava gritar se não fosse “chegado dos donos da farmácia”. E lá de casa, graças a Deus, mamãe era chegada de Seu Bebé e donos de outras farmácias.

O casal de fulanos e a desmilinguida asmática tinham de ir do Amapá, atravessando o Rio Itacaiunas no Porto das Canoinhas, até onde um dono de farmácia abrisse a porta. Mesmo assim, passavam horas e horas futurando alma-viva numa Velha Marabá que não gostava da madrugada.

Mesmo quando mudamos para a Folha 17, na década de 1980, ir à uma farmácia à noite dependia de táxi. Mas eles quase não trabalhavam à noite, demanda rara e um medo. Vez por outra faziam favor. Uns prestativos, outros acionavam a bandeira 2 na capelinha. Tudo bem, mas iam e voltavam ser dar um pio. Aborrecidos.

Havia dessas coisas. É do mesmo tempo, ou encostado dele, os horários comerciais dos supermercados (só tinha dois, Soraya e Botafogo). Ambos fechavam as 18 horas. Acreditem. Mas nada de esquisito nisso, o ritmo da Velha Marabá era outro. Era o sicrano empurrando o carrinho e os empregados baixando as portas. Quem quisesse fazer compras, tinha de fazer cedo. Antes da hora das galinhas. Falando em ritmo, quantas vezes a mercearia do bairro fechava e a mãe obrigava o menino a pedir ao bodegueiro que o atendesse!

Por cima de pau e pedra ou chovendo canivete o cotidiano ia indo. A meninazinha com asma não morria. Chegava perto. O remédio aparecia ou ela era internada, por dias, no Hospital do Sesp, na Cinco de Abril. Caça a veia, injeção na cabeça e casa faltando um rebento. Escapava e voltava ao convívio do magote.

Escapava-se vírgula. Tinha-se sorte e anjo da guarda. Passei a acreditar em anjos da guarda. Sorte de ter passado boa parte da vida andando de carro sem cintos de segurança e não ter morrido numa barroada. De não ter nenhuma tampa à prova de crianças em vidros de remédios, detergentes ou veneno de rato. De andar descalço no quintal das fossas e não ter virado lombriga. De beber água direto do rio cheio de caracóis. De tomar sobejo de coca-cola na boca da garrafa e correr o risco de pegar tuberculose ou meningite do amigo…De comer fruta caída no chão ou bicada pelo passarinho…Ah, besteira!

Saudade de mastigar Melhoral Infantil e fugir de uma Benzetacil.

* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.