Correio de Carajás

Do assum-preto ao chupinha cantador do velho varjão

“Tudo em vorta é só beleza, sol de abril e a mata em flor, mas Assum Preto cego dos ‘óio’ não vendo a luz, ai, canta de dor”.

A primeira vez que ouvi esta música, interpretada pelo saudoso e carismático Luiz Gonzaga, quase chorei de pena desta pobre ave, tamanha malvadeza com a bichinha! É muita maldade do homem fazer uma judiaria dessa com um pássaro tão indefeso.

A princípio cheguei a pensar tratar-se de uma letra inventada para ter sucesso, através da comoção que gerava, mas depois de me informar melhor constatei que era um caso verídico. E isso acontecia com frequência no sertão do nordeste brasileiro.

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Eu morei no Nordeste durante cinco anos. Era no sertão de Pernambuco, num internato de confissão religiosa cujo prédio até hoje existe, na micro cidade de Belém de Maria. A população do internato parecia ser maior do que da própria cidade.

Minha adolescência e início da juventude foram cultivadas ali, onde aprendi muito sobre a cultura nordestina. Foi ali que conheci o assum-preto. Sim, todo preto, mas seu canto era bonito. Um amigo me contou a triste história da tradição de se furar o olho da ave no Nordeste para que ela pudesse cantar mais bonito ainda.

Fui tendo curiosidade sobre aquela linda ave. Os mais antigos de lá me contaram, que vive nas caatingas e canta apenas à noite, quando já bastante escuro. O sertanejo, que leva uma vidinha apertada, passando necessidade muitas vezes, caça-o e prende numa gaiola.

Para vender aos turistas que por lá trafegam, visando alguns trocados para seu sustento, furam seus dois olhinhos com espinho de laranjeira, para que na escuridão eterna de sua cegueira, cante sem parar, dia e noite, encantando o incauto comprador.

Ao levá-lo para casa, nota que a pobre ave vai ficando jururu e emitindo apenas uns melancólicos assobios – prenúncio de uma morte próxima. Seu frágil corpo vai se definhando a cada dia e em breve estará morto de tristeza e de fome.

Mais um ser indefeso que alegrava a sinfonia da natureza foi-se embora. A quem reclamar? Não vem com garantia. O ingênuo comprador nem sequer sonha com a maldade feita ao pássaro. Foi enganado.

A música de Luiz Gonzaga, então, fez todo sentido para mim. É uma obra que transita entre a beleza da natureza e a dor provocada pela crueldade humana. A música começa descrevendo um cenário ideal, com o sol de abril e a mata florida, mas rapidamente contrasta essa imagem com a tristeza de um pássaro cego, que canta sua dor por não poder ver a luz.

Essa ação reflete uma crítica social à insensibilidade e à exploração da natureza e dos seres vivos para o prazer humano. A música também aborda a questão da liberdade, comparando a vida do pássaro cego, que vive solto, mas incapaz de voar, com a de um pássaro em cativeiro, que anseia pelo céu que nunca poderá alcançar.

No último verso, Luiz Gonzaga faz uma conexão pessoal com o pássaro, expressando que seu próprio canto é triste como o do assum-preto, pois também teve seu amor roubado, que era a ‘luz dos óios’ dele. Assim, a música se torna uma metáfora para a perda e a saudade, sentimentos universais que tocam profundamente o coração humano.

Voltei ao passado e fiz uma retrospectiva da minha infância no varjão da Velha Marabá, quando prendíamos chupinhas silvestres numa gaiolinha para, egoisticamente, ouvir seu canto. Neste caso, a avezinha era muito bem tratada, porque, para nós, ter um pássaro cantador era sinal de status.

Eu e meu primo José Wilson passávamos horas na matinha do varjão, perto do Rio Itacaiunas e do Granito “passarinhando”. Sim, era um verbo pra gente e aquilo nos seduzia. Às vezes, só apareciam rolinhas, mas quando um chupinha caía na arapuca, a gente vibrava.

Aos domingos, nos reunimos na praça, cada qual com sua gaiola, para mostrar e ouvir nossos prisioneiros dobrarem até ficarem cansados e de língua de fora. Voltávamos para casa felizes quando eles não nos decepcionavam. Recebíamos propostas de compra ou troca por outro pássaro. Eu nunca vendi um dos meus!

Mas havia um colega mais velho que eu e Zé Wilson que ganhava dinheiro prendendo os pássaros para vender. Passados 40 anos, ainda temos muitos pássaros entre nós, e os vendedores se multiplicaram e usam a internet para alcançar clientes.

Ainda bem que não temos assum-pretos por essas bandas.

* O autor é jornalista há 28 anos e publica crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.