Dia das Crianças foi ontem, eu sei. Mas ainda hei de falar um pouquinho sobre essa data mágica que tem prazo de validade para todo mundo.
Décadas antes de falarem dessa tal felicidade interna bruta (o adjetivo “bruta” não combina com “felicidade”, mesmo em estado de metáfora), o bairro onde inventei minha infância já era useiro e vezeiro.
Sim, era um bocado de gente que estava se letrando e não tinha fusca. Que devia na bodega latas de sardinhas e ovos anotados na caderneta. Que quase todas as casas tinham quintais e pé de árvores de dar mangas, mas existiam fossas que explodiam com as chuvas.
Leia mais:Pois é, a vida de criança ali era algo de seriguela madura. Coisa de coroação de Maria e um magote de meninas virando anjos em maio. E como era esperado chegar o tempo de férias! Mais pelas ruas que ganhavam outra alma do que sonhar em ir para a Disney de avião ou para o Beto Carrero.
Avião pra nós, só os mal-desenhados na folha de caderno da escola ou os longes, que subiam e desciam vindos do Bairro Amapá. Bem longe, lá no céu, onde voávamos raias com cerol proibido. Ou aquela musiquinha de final de ano da Varig: “Estrela brasileira no céu azul, iluminando de norte a sul…”.
Jogar peteca (bola de gude) nos terrenos baldios da vizinhança era uma atividade preferida quando o sol estava quente e ainda não tinha moleque suficiente para jogar futebol. Ah, tinha dinheiro que a gente criava, também, juntando carteira de cigarro.
Tão boa a biografia de menino! Cheio de irmãs, nenhum varão, mas três primos e um tio agregados que viviam entre nós, e um avô que aparecia e sumia como se fosse Mestre dos Magos. E gente que vinha do Beiradão do Rio Itacaiunas para se consultar e se arranchava nas redes dos vãos acolhedores lá de casa. Até mesmo os indígenas Xicrin se acampavam por lá de vez em quando, vindos do Cateté.
Brinquei que perdi a conta de quantos gols fiz nas travinhas do campo de calçamento na Travessa Lauro Sodré. Por quantas meninas me apaixonei e elas nem aí. De quantas voltas dei de bicicleta pelas ruas que mamãe nunca imaginou o mundo. De quantas mentiras inventei pra não apanhar com a correia da máquina Singer que ela ficava grudada a tarde toda, depois de fazer o almoço para aquele mundaréu de gente.
“Todo mundo um dia foi criança”. E já mijou na piscina; e já achou moeda na rua; e já catou tampinhas de refrigerante pra nada; e já chorou quando o cachorro morreu; e já teve inveja da bicicleta do amigo; e já vomitou na escola e achou ótimo voltar pra casa e ficar deitado lendo revista em quadrinhos. E gostava de tomar Melhoral Infantil quando a febre batia e mamãe ficava preocupada…
Nunca quis voltar no tempo, reviver quando corria atrás da Kombi que rebolava figurinhas. Nem quis regressar ao primeiro Sítio do Pica-Pau-Amarelo. Muito menos tomar água de filtro de barro; não ter chuveiro no banheiro e tomar banho no fundo do quintal com uma caneca, e ganhar roupa social como presente (papai gostava de fazer isso).
Minha infância foi um bocado de mariolas de goiaba e banana. Tijolinho de leite, cocada, puxa-puxa, lombriga, fubá, dindim de batata doce, Complexo B, Emulsão de Scott, papeira, São João, catarro verde e pé cortado no caco de vidro quando brincava no Granito ou no varjão ali perto…
Também na infância, a gente esperava o dia que a mãe dava dinheiro para ir para o cinema assistir ao lançamento dos Trapalhões. Quando demorava, o jeito era vender peixe para seu Michel e juntar uma grana para garantir uma cadeira no Cine Marrocos.
Mas não tenho saudades de retorno. Nem nunca quis que minha infância fosse igual para Breno e Brenda, ou agora para minha neta Maria. Cada um com suas fantasiações. Cada qual construindo suas histórias a seu tempo.
O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.