Correio de Carajás

Crônica Ouriço Cheio: Segunda onda que não dá para a gente surfar

Enquanto escrevo essa crônica, da sala de casa numa tarde de domingo, entre dramas e um idiota a berrar lá na rua que tudo é “mimimi”, parte de meu ouvido não escuta. E não é pela covid, porque ainda não peguei a doença. Mas não saio por aí me vangloriando disso, porque não tenho sistema imunológico melhor do que ninguém.

Jofre, meu amigo de natação, foi ao médico porque estava sem sentir cheiro de nenhuma comida, e foi acalentado com a notícia que vai ficar bom, mas só depois que a morte se der por vencida nos hospitais entupidos de desesperos. É porque um bando de bocó desdenha do morto que não é dele, do enterro que ele não chora.

Aqui na sala de casa, em frente ao computador, uma parte de mim é asa, outra parte diz que é para ficar. Não é arte, é o sono sem dormir, a matéria por fazer, a transa para rasgar, o dinheiro que tem de se ganhar, o supermercado e um monte de gente pedindo uma ajuda, pão e álcool.

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O povo amontoado nos abrigos da enchente, que nem Netflix tem para escapar da noite mal dormida, da casa desarrumada porque não têm casa, do frio do Galpão da Obra Kolping e a meladeira da rua esburacada e a chuva só é boa para quem tem cama.

É um Poema Sujo esse tempo torturando, militares embaçando e a pandemia com vacina a conta gota. Um magote de gente exilado de qualquer abraço dentro de casa e que parece ouvir:

Turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / Escuro / menos menos / menos que escuro / menos que mole e duro / menos que fosso e muro: menos que furo / escuro / mais que escuro: claro …

Pelo zap, Raquel me diz que Carol está há 24 horas a procura de um médico para fazer uma visita particular a um familiar internado em uma UTI. A moça entrou em contato com 23 doutores. Ninguém consegue nem se mexer de tantos doentes.

Os médicos que responderam pedem desculpas. Minha querida, acompanharia sim, mas nesse momento não tenho a menor condição de assumir novos casos. Infelizmente, me perdoe! Todo respeito aos profissionais de saúde que estão enfrentando uma queda, em sequência, de boeings.

Fico sabendo também da morte de tio Araújo, um pescador bacana que morava lá para as bandas da Liberdade. Não teria sido por Covid, mas o hospital mandou que voltasse para casa porque estava lotado de pandemia. Voltou, continuou passando mal e padeceu. Até morrer quase a míngua.

São muitos desesperos. Só sabe quem é ruminado pela contaminação. Um amigo da natação – na verdade o melhor nadador de Marabá na atualidade – Bruno Sepeda, estava esperando o terceiro filho, mas a esposa pegou covid-19, foi levada às pressas para o Hospital Regional, a criança nasceu prematura e a esposa permanece na UTI. Ou morria a bebê ou morreria a mãe sem fôlego.

Está escrito, infelizmente, no boletim epidemiológico da última semana deste março que mal nos trouxe más notícias, e já estamos sem juízo, a previsão do por vir é de uma “longa segunda onda”. Em progressão que, agora, tende a um padrão de propagação exponencial.

Ave, Maria! Reclamaria minha mãe Maria José se lesse o texto de hoje. Cadê aquela história que você me contou do rapaz que tem um berçário de mudas de castanheiras e vive de reflorestar a cidade?

E aquela outra que vive de anotar o nome das pessoas em cadernos para rezar pelo fim das aflições delas? Tem também aquele poeta dos igarapés, que diz que o orgulho de uma árvore é ser escolhida como a casa do pássaro? Escreve sobre eles, menino! Chega de tanta coisa…

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira