Correio de Carajás

CRÔNICA OURIÇO CHEIO – Rodoviária da Folha 32: Por que escolhi não esperar

“Trazia-me pirulito Zorro, revistinha com histórias da Madame Mim e Mancha Negra. Figurinhas difíceis dos álbuns do Walt Disney e daqueles de nunca completar a bicicleta, a panela de pressão, que iludidos iríamos ganhar”.

Ficar em casa antigamente parecia chato, mas eu só gostava de sair de casa mesmo para jogar futebol: Granito, Piçarrão, Campo da Folha 11, Campo da Folha 18, por aí vai. Mas houve um tempo em que, ficar em casa, era bem gostoso.

Havia uma menina que ia lá pra casa todas as vezes que meus pais iam pra Rua. Rua era o Centro da Cidade, onde os ônibus deixavam os adultos que iam resolver nos bancos, cartórios, lojas, escritórios, quase tudo isso na Velha Marabá.

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Vinha a menina, beijava-me a cava dos pés, beijava-me a palma das mãos, beijava-me as pálpebras dos olhos fechados, beijava-me a ponta do nariz.

E mordia-me o molinho da orelha onde era para ter um brinco, mas naquele tempo meninos não usavam enfeites.

Pedia-me que lhe beijasse os calcanhares perfumados, lhe beijasse as costas dos joelhos, os arredores dos ombros alvos e dentro das axilas. Que voasse a ponta de meus dedos do queixo ao umbigo dela, do pescoço ao cóccix. Arrepiava-se e tinha ligeiros tremeliques.

Ela cheirava à mãe dela. Tão bonita e desenhada quanto a senhora, que ainda era muito moça pra ter sido mãe. Tínhamos 16. De poucas palavras, apenas algumas certeiras, me fazia feliz as segundas (chatas), as quartas e as sextas.

De uma generosidade… Trazia-me pirulito Zorro, revistinha com histórias da Madame Mim e Mancha Negra. Figurinhas difíceis dos álbuns do Walt Disney e daqueles de nunca completar a bicicleta, a panela de pressão, que iludidos iríamos ganhar.

Eu levava pra ela: chiclete bola Ploc sabor laranja com anel pregado no Durex. Goiabas quando os pés estavam cheios no quintal lá de casa. E pintinhos de granja comprados de um caminhão Ford cor verde que passava toda terça-feira na Folha 17, com um megafone e um sotaque carregado para o gauchês, dava a certeza de que não era daqui do Pará.

Esta crônica reveladora – e difícil – é para Clarinha, a menina do outro lado do mundo. Foi levada embora quando os pais descobriram que estávamos fazendo “coisas feias”. Eram não, havia doce. Não nos feríamos, não nos machucávamos e alimentávamos alegrias. Não havia nada de sexo. Ríamos uma tarde inteira e, depois, sozinhos falávamos para o vento. Mamãe ralhava. Arrumação, menino!

Nunca mais a vi, há 35 anos. Nem cartas nem ouvir dizer. E todas as vezes que escuto Nana Caymmi e Chico Buarque cantando “Até Pensei” volto lá por casa, corro à porta da sala de receber, subo o muro.

Por tempos, pedi a meu pai para irmos, no Velho Fusca bege, à Rodoviária da Folha 32. Passear. Dizia que amava os ônibus da Transbrasiliana, sonhava em ser motorista particular para ele, e Velho Chico se enchia. Mas “nera” isso não. Todo ônibus que chegava, todo bichão que freava, eu tinha certeza dela desembarcar.

Fui lá até antes de eu ir embora estudar fora, também, em Pernambuco, e toda vez, até hoje, quando tenho de ir à Rodoviária, tenho a sensação de que Clarinha estará chegando. Fui deixando de mão. Não por querer.

“Junto a minha rua havia um bosque/ Que um muro alto proibia… A felicidade morava tão vizinha/ Que, de tolo, até pensei que fosse minha..”.

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira