Correio de Carajás

O menino que não perdia uma chuva na Folha 17

Aquele menino era diferente dos demais. Mas todos nós gostávamos de sua companhia. Lino-Plantador-de-Árvore tinha fama de nunca perder uma chuva. Quanto mais forte, melhor. Admirava-se perguntar o porquê do pé molhar a água. Talvez por isso, durou tanto nesta vida e nós, meninos da Folha 17, não soubemos nunca se um dia ele morreu.

Enxergava as coisas pelos olhos da cabra-cega. Vendado, arriscava experimentar os descaminhos dos morcegos. Bate-não-bate, sobe-e-desce, tainhas em diagonais, caracóis no ar. Nisso, aproveitava para espalhar sementes de pés de quê.

E deixo bem claro que ele não morreu quando brincou de pegar, de uma vez só, pneumonia, tuberculose e malária. Mesmo seco, mirrando-se, ria-se ainda muito. Emagrecido, febre lá pelas tantas, brincava de quente e frio. De gela-tá-longe. Tremia-se de quebra-queixos. Ia para a rua e sorria com os meninos que lhe chamavam de tio.

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Um dia, quando caiu doente, já havia plantado mais benjamins do que carros. Então, os motoristas engarrafavam-se à procura de sombras. Por ele, todo mundo teria uma árvore ao invés de um anjo da guarda. E nunca poderiam deixá-la cortar.

Pensava assim: havia gente que parecia com a família das jabuticabas. Doces, olhinhos pequenos, bilas tição. No passado, a avó dele alimentava uma multidão de jabuticabeiras. Um jabuticabal mal acostumado. Não acarinhasse os troncos, não falasse bom dia, não cantasse pra dormir – não dava frutas em botão.

As tomateiras eram birrentas. Assim como as mangueiras, os tamarindos e os pés de jaca. Jaqueiras cheias de nove-horas. Deixavam até de beber água, mas as tardes com a velha não podiam deixar de anoitecer. Sentada ali debaixo, nem se preocupasse, podia ir batendo o bolo ou brincar de se lembrar. Não cairiam de maduras.

Pra cada neto deixou testamento. As goiabeiras, bem vinte e três, com cinquenta lagartas-de-fogo, 101 joaninhas, um bando de percevejos, duas sabiás, três sibites e duas famílias de caldo-de-feijão ficaram pra o mais novo dos meninos.

A menina do meio recebeu da avó as mangueiras de frutas rosas (de comer cortando com faca de mesa), as ingás e os pés de cajaranas. Sem cascas, pé de sal, e as touceiras de cana doce. Pro miudinho, também doou o macaubal e a récua de coco-babaçu.

O bambuzal, os açaizeiros e um monte de borboletas enxeridas ficaram para Pedro. Com uma condição: não caçasse os pernetinhas. Pra Raquel, Sarah, Letícia e Milena entregou os ninhais de andorinhas de entardecer e as latadas de maracujás e beija-flores. Além das pedras de morar musgos e o lago de cantar rãs.

Lino-Plantador-de-Árvore herdou tudo que foi de sementes de cajá, gatos libertos, e os setembros de ipês amarelos.

 

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira