Correio de Carajás

Crônica ouriço cheio: Eu queria que papai fosse o Dr. Lacerda

Minha infância foi assim: marcada por muita diversão, meio largado no Granito (campo de futebol de várzea da Velha Marabá), meio livre na rua para jogar peteca, empinar pipa e brincar de 31 Alerta à noitinha, com os vizinhos (principalmente as vizinhas). Coisa de menino, coisa de felicidade que a gente quer para nossos filhos. Estudei, também.

Não reclamo de meus pais. Minha mãe fez o que pôde e o que não pôde para nos ver estudar e “crescer na vida”. Cresci. Acho que venci, como ela costumava dizer até alguns anos atrás. Mas vez ou outra me pego avaliando o passado e sou acossado pelo pensamento de que minha infância e adolescência deveriam ter sido diferentes.

Explico: de tanto brincar, reprovei um ano (a terceira série). De tanto jogar futebol e vôlei, achei que o futuro estava no esporte. De tanto namorar na juventude, achei que a vida era dos que curtem o dia de hoje.

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E fiquei mais convencido de que estava errado, quando conheci a história do Dr. Lacerda, pai de minha amiga Ana Cristina Lacerda, jornalista. Tenho lembranças só de vê-lo em alguns poucos lugares aqui em Marabá. Mas a vontade que tenho de ter sido seu filho não é para dizer aos meus colegas que eu era filho de engenheiro civil. Mas pelo hábito que aquele senhor sereno cultivava dentro de casa e que contagiou a filha. Ele lia muito. No superlativo mesmo.

E esse prazer pela leitura contagiou a filha e os dois visitaram o mundo inteiro por meio da leitura de clássicos das literaturas brasileira e internacional. Queria que, ao invés de me levar para comprar roupas no Armazém Paraíba ou na Pernambucanas, Chico Pompeu tivesse me dado livros.

Abaixo, transcrevo uma crônica que Ana Cristina me enviou semana passada, baseada na experiência de leitura com seu pai. Desculpe-me, tenho de compartilhar:

Foram embora para Pasárgada.

Por Ana Lacerda

Eles aproveitaram o feriado de 21 de abril e o belo domingo ensolarado para andar lá por casa. Saíram dos lugares que usaram para descansar nas últimas décadas e foram logo procurando outros caminhos. Foram companheiros do meu pai, do Dr. Lacerda, muitos e muitos anos, tocaram suas inebriantes peças em vinil e depois nos cd´s. Eram mágicos, entraram para a história do mundo pelo talento e entraram para minha vida, desde a infância, quando se apresentavam aos finais de semana. Sempre estavam por lá, Mozart, Bing Crosby, Louis Armstrong, Chopin, Liszt, Karajan, Wagner, Beethoven, Tchaikovsky, Frank Sinatra, Mantovani, Glenn Miller, e muitos outros gênios da música. Rompiam as barreiras da língua e do tempo e enchiam a casa com suas notas perfeitas. Todos juntos.

Foi um final de semana erudito, de resgate da minha própria história, momento de relembrar onde aprendi as cores, os nomes dos animais, as capitais dos países. A poeira que cobria as páginas amareladas indicavam a solidão que os mais nobres autores se encontravam. O filósofo grego Nikos Kazantzakis morava ao lado de um dos mais importantes escritores portugueses da história, Eça de Queiroz. O romancista francês Alexandre Dumas e o escritor russo Liev Tostoi, um dos maiores de todos os tempos, ficavam dois andares acima de Monteiro Lobato, que tinha deixado sua coleção lá na estante de madeira e de Machado de Assis, que discutia do alto da sua intelectualidade as relações sociais do Brasil. Tudo isso sob a supervisão dos titãs da Literatura, da Ciência e da História.

Shakespeare foi um dos últimos a partir, declamando Hamlet e deixando o conselho: “Mostre-me um homem que não seja escravo das suas paixões”. Ele foi embora e me deixou pensando, recordando e me dando a certeza que José Heimar de Lacerda foi escravo dessas duas paixões: a música e a literatura e, como todo encantamento transborda a alma, deixou transbordar pra mim o que ele tinha de melhor”.

Mais do que dar livros, que os pais deem o exemplo de leitores a seus filhos.

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista do CORREIO há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira