Correio de Carajás

CRÔNICA OURIÇO CHEIO – Como se fosse o amor nos tempos do cólera

“Naquelas mentalidades, o patriarca era dono das cabritas e as encomendava para quem achasse que cabia. Fosse para satisfazer um costume da praça ou bancarrota que carecia ser salva a pindaíba”.

Parece história de Gabriel García Márquez. Aparecido entrou na minha sala de trabalho, na Câmara Municipal, durante a pandemia, para contar uma história para eu recontar. Foi hilário porque, pela primeira vez, tive de ir anotando alguns detalhes sob a confissão que eu contaria, aqui neste espaço, o que aconteceu a seus antepassados.

A vó dele, quando brochota, também penou ao virar prometida e esposa de um futucador muito mais antigo do que a virgem. Idade de ser o pai da noiva e com sobras exageradas de tempo.

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Mas o que se podia fazer? Naquelas mentalidades, o patriarca era dono das cabritas e as encomendava para quem achasse que cabia. Fosse para satisfazer um costume da praça ou bancarrota que carecia ser salva a pindaíba. Havia muitos. O rapaz velho afortunado, ou viúvo de moça nova finada no parto, aninhava-se repetidamente. As mulheres morriam demais.

Então, a vó de Aparecido também suportou casamento medonho. A começar que o tratava por senhor e ele nunca fez questão de tirar a canga. E parece assim, quem dava o de comer e morar à esposa, crias e empregados, se via nos direitos de usufruir de quem urinasse de cócoras. Da patroa às serviçais. Até mesmo das filhas…Uma vergonha.

Como um escroto e até parece que em nosso tempo coisas assim não acontecem. Das quatro miúdas, arvorou-se de todas as meninas. Um ogro desta parte da Amazônia que assustava quem devia proteger desde bonequinhas. Uma a uma as vestia de cordeiros e foi sacrificando a inocência delas, desmantelando as descobertas das moças. Foi preso um dia e hoje é um vivo morto…

Sim, mas a avó do confidente teve 14 rebentos com o homem que a possuiu pela primeira vez e sempre. E que primeira vez! Tanto suplício para desestreitar o que pensava servir apenas para fazer xixi. Não diferenciava. Um boi bufando em patas e a raiva dela do pai que a encomendou e afanou os livros. Era menina, feito as bonecas de feira ou vestidas nos sabugos secos de milho.

E teve de aguentar até o dia em que o marido amanheceu duro, cheirando a flor de morto. E houve uma satisfação funda que a fez chorar rasgando. Do grito por medo de amanhecer deitada ao lado de um defunto e a felicidade da hora dele descendo na cova e fim. Esgoelava-se muito que dava dó aos outros. Achavam-na compadecida. Era aliviação!

Para se ter uma noção, nunca se permitiu ser beijada quando chegava a hora das coisas. Ele fazia e avacalhava, mas beijo… Não houve peia que a obrigasse permitir. Nem no rosto nem na mão e jamais na boca. Talvez, porque imaginasse (era menina quando foi cedida) que ia ser devorada por aquele bicho que a cobria quase todo dia.

Era de se compreender. A menina saiu das histórias de trancoso, onde havia lobos, bichos-papões, mula-sem-cabeça, caiporas e outras criaturas de fazer medo, para um altar. Nem cabia nos tamancos. E, de noite, nas núpcias, quando a mãe, o pai, os irmãos e a vó se foram, viu-se acuada num quarto.

Quando o bregueço morreu, fez-se ligeira para desamarrar as promessas dos 14 matrimônios das filhas e dos filhos. Ficou falada, mas não tinha fio de bigode para honrar nem comia na cuia de ninguém. Nem o nome do pai, que ainda vivia feito um boi de moenda, importou. Para se vingar deles, mandou todo mundo ir atrás de livros. Sim, de livros. Porque só eles podem aliviar a dor do coração.

Na história que ouvi, parecia que eu via um Juvenal Urbino e uma Fermina Daza. Mas isso fica para quem leu García Marquez até o fim. (Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira