Um filho de Zeti, moradora da Folha 27, que nunca mais voltou para vê-la, reapareceu há alguns meses. Mas chegou tarde.
Há dois anos ela se foi e, mesmo tendo passado mais de 35 natais sem receber um postal que fosse, deixou uma bênção falada para desaparecido.
Pergunta se ele pensava em mim? Se não fazia falta os seis irmãos? Qual tamanho era a saudade dele correr para a rua para banhar-se em tempos de chuva? Havia netos? Diga que o esperei o quanto deu.
Leia mais:E pediu aos outros irmãos que não fossem rudes nem negassem deixá-lo entrar casa onde foi apanhado por dona Maria das Dores, a parteira de meio mundo por aquelas bandas.
Deixasse-o andar pelo corredor, entrar de quarto em quarto, fosse até o quintal e visse que a goiabeira, que ele tanto gostava de subir, agora velhinha, ainda estava lá.
Também não cobrassem por que sumiu, por que não deu um telefonema, por que nem um telegrama…
Mas os irmãos não o receberam nem no portão. Mandaram dizer que ele não existia.
Não havia mais razão de ser agora. Não era somado como irmão e nenhum sobrinho, até então, sabia da existência do tio repentino.
Depois, semanas depois, os irmãos revelaram a seus filhos os porquês. Cláudio (o nome foi mudado a pedido) não era flor que desse em jardim ou se oferecesse em buquê. Havia ido para o Exército e trabalhou na Guerrilha do Araguaia.
Estava no Brasil Nunca Mais. Torturou, matou, viu rebentar e ressuscitar muita gente pra mais choque e afogamento.
Dona Zeti sabia, mas custava crer no que havia se transformado o menino que amava tomar banho na chuva, de jogar travinha no meio da rua. Dos filhos, confessa um dos irmãos, era o mais doce, até o viam afeminado além da conta e o protegiam das chacotas da rua e língua da família.
Vai saber como são as coisas. Todo mundo criado na mesma casa, com as mesmas ofertas, nos mesmos colégios?
Foi educado no Santa Terezinha com as freiras! Mas também teve passagens pelo Plínio Pinheiro…
Deu no que deu porque os destinos talvez sejam assim. Correm sem cabrestos e os bestas acham que têm o controle. Foi o que avaliou um dos irmãos, agora com 57, ao me contar a história num domingo, no meio da Feira da Folha 28.
Hoje, arrependido do “não” ao irmão pródigo, não sabe onde encontra-lo. Naquele tempo, eu achava que não tinha esse negócio de perdão para quem fez os outros irem ao inferno.
Já se viu, maltratar pessoas inocentes, testemunhar outros morrendo aos poucos e não fazer nada, mesmo depois que deu baixa? Não é coisa pra cristão.
Chorou arrependimento no meio da feira. Me chamou para ir conhecer a casa da velha Zeti, sua mãe. Fui, meio a contragosto, porque a história, por si só, é triste. A casa era numa ruazinha perto da grota, com as marcas do tempo. O teto baixo, banheiro por acabar e uma cozinha de onde se via a porta da frente. No quintal, contemplei o pé de goiabeira do tronco grosso e galhos que davam para os quintais dos vizinhos.
Dos seis irmãos, apenas três casaram-se e os demais resolveram viver do passado e congelá-lo no coração.
Meu amigo, que é o do meio nessa família, disse que queria reencontrar o irmão e pedir desculpas e…perdão.
(Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira