Correio de Carajás

Crônica Ouriço Cheio: A última tarde de amor de dona Maria Lázara

Eu a conheci quando ela tinha 69 anos de idade. Era a mulher mais excêntrica e impávida da alegre Rua do Porto da Balsa, no tradicional Bairro Amapá.

Gostava de deixar bem claro aos que lhe visitavam que suas refeições tinham uma religiosidade de horário e cardápio: taça grande de café preto no desjejum, uma posta de peixe cozido com arroz branco, no almoço, e uma taça de café com leite com um pedaço de queijo antes de dormir. Bebia café preto a toda hora, em qualquer parte em qualquer circunstâncias e até trinta xicrinhas diárias: uma infusão igual a petróleo cru que preferia preparar ela mesmo, e que sempre teria ao alcance da mão.

Os sete filhos que pariu com a velha parteira Januária, na própria residência, no Porto da Balsa, sabiam dos rituais da mãe e tratavam de ajudar a cumpri-los à risca, providenciando o peixe para que não faltasse à geladeira nenhum dia da semana, principalmente pacu manteiga, sua preferida.

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Quando a vi pela primeira vez, num encontro fortuito ao lado de seu filho caçula, Zé Miguel, tive a impressão de que se tratava de uma velha rabugenta e infeliz. Falava impropérios em frente a uma caixa de isopor com peixe e gelo, de um vendedor que passava no Amapá todos os dias e considerava Lázara uma cliente vip.

O cardápio imutável não era a única paixão desta senhora sessentona. E só fui saber por quem seu coração batia forte quando passei a frequentar sua casa de madeira em outras ocasiões, quando ia buscar o filho (goleiro) para jogos de futebol importantes para nosso time. Enquanto o aguardava – passar perfume e dois tipos de hidratante pelo corpo – eu ia conversando com Lázara, e mudei completamente a visão que tinha dela. Era divertida, contadora de potocas e com uma indiscrição para falar dos amores contrariados ao longo da vida.

Mas havia um homem que mexia com seu coração e bagunçava toda sua vida. Miguelão, um carpinteiro das antigas, costumava recebê-la em sua casa, na Rua das Cacimbas, lá mesmo no Amapá. Ele morava só e Chamegava com Lázara às segundas à tarde, quando a velha senhora saia de casa para visitar uma “amiga”. As visitas tórridas ocorriam há 24 anos e não havia nenhuma força desta terra que impedisse aquela mulher de percorrer os 2.314 passos (ela contou por vários anos).

Eram, confidenciou-me ela, as melhores tardes de sua vida. Mas os filhos não podiam saber. Reclamariam, porque começou o relacionamento diziam que ela não poderia ter mais nenhum homem na vida porque estava velha demais para isso.

Lázara levou o discurso dos filhos a sério. Sonhou, por muitas noites, fugindo na madrugada para dormir de conchinha com Miguelão e voltar antes do sol raiar, passar o café e fazer de conta que nada anormal tinha acontecido. Mas o medo de eles acordarem e a flagrarem era maior que a vontade.

Então, contentou-se com as cada vez mais distantes segundas-feiras. Miguelão gostava de morar só, passava o dia na beira do rio calafetando barcos, mas as tardes de segunda-feira eram sagradas. Voltava 10 horas do trabalho, passava na única peixaria do bairro e levava corvina, que já tinha encomendado. Não se esquecia – nunca – de uma quarta de café que ele não ousava passar. Deixava na mesa para que a amada mesmo fizesse o serviço.

E foi assim que, há dois anos, os dois se encontraram como as duas décadas e meia testemunhavam. Comeram peixes, tomaram um bule de café e deitaram-se para fazer o que mais gostavam. Foi intenso, mesmo que as agruras da idade impusessem certas limitações.

Lázara chegou em casa às 17 horas, em ponto. Aquele dia estava cansada. Despediu dos filhos que havia chegado, deitou, dormiu e não acordou mais. Teve um infarto aos 73 anos e Zé Miguel contou-me, no velório, que ela fora encontrada em posição fetal com um ar de felicidade como ele nunca tinha visto.

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira