O ano de 2018 chega ao fim com o mercado editorial e livreiro do Brasil vivendo uma das maiores crises de sua história. Consideradas gigantes do setor, as redes de livrarias Cultura e Saraiva – responsáveis pela venda no varejo de 40% dos livros no país – entraram em processo de recuperação judicial, fechando lojas em dezenas de cidades, demitindo em massa e dando um calote de mais de R$ 300 milhões nas editoras. Mas esta é apenas a parte visível do iceberg.
Com alguma experiência acumulada em diferentes pontas do setor – como editor de suplementos literários em jornais e revistas, como autor de mais de uma dezena de livros publicados, como editor de títulos de ficção e não-ficção em algumas editoras e até mesmo como agente da política pública (além de, evidentemente, como leitor inveterado e verdadeiramente apaixonado por livros) – minha impressão é que não se trata de uma crise conjuntural, mas da falência de um modelo que já vem há anos dando sinais de esgotamento.
E não falo apenas do aspecto econômico: é certo que se trata de um mercado no qual, considerando receitas e despesas, geralmente a conta não fecha. Mas outro aspecto essencial da crise é simbólico: ao longo dos anos, o espaço dos livros físicos na vida dos leitores diminuiu, tanto como forma de entretenimento quanto como ferramenta essencial e indispensável de formação e emancipação. Este é um fenômeno sociológico que se pode lamentar, mas que não pode ser negado.
Leia mais:É claro que isso decorre de aceleradas transformações tecnológicas e comportamentais associadas à digitalização, que multiplicam a oferta de conteúdos que disputam a atenção e o tempo cada vez mais escasso do consumidor de bens culturais. Mas houve também, é necessário que se diga, uma resistência psicológica do mercado editorial a compreender o real impacto dessa mudança, tanto nos ambientes físicos quanto nos virtuais.
Apegados à premissa de que o livro físico jamais vai desaparecer, editores e livreiros continuaram se orientando pela mentalidade analógica do século passado, ao mesmo tempo em que faziam uma opção preferencial pela espetacularização midiática do livro, em detrimento da estruturação de uma indústria capaz de se auto sustentar e de se conectar com as reais demandas de seus leitores (aliás o mesmo processo ocorreu com os jornais e revistas impressos).
A opção pela espetacularização se manifesta no fato de que novos escritores são lançados periodicamente como gênios literários, mas são pouquíssimo lidos. Não importa: o que interessa é aparecer, dar entrevistas lacradoras e participar de festas literárias e eventos sociais, formando um clube fechado e refratário a talentos que não se alinhem com certa visão de mundo ou código de conduta. Em proporção inversa ao espaço na mídia, as tiragens desses livros – aliás confidenciais e conhecidas nos bastidores como “mentiragens” – são quase sempre muito baixas, e as vendas irrisórias. Quem lacra não lucra.
Curiosamente, sempre que eclode alguma crise, coloca-se a culpa nos suspeitos de sempre: os brasileiros leem pouco, o governo não ajuda. Ora, não joguem a responsabilidade nos leitores. Minha percepção é que os brasileiros leem cada vez mais, o suporte material é que deixou de ser obrigatório. Leem muita bobagem, claro, inclusive nas escolas, mas demanda por livros não falta. Já sobre o papel do governo, basta dizer que o poder público é, equivocadamente, o maior comprador de livros do Brasil, a ponto de tornar a maioria das editoras dependente (no sentido de viciada mesmo) em dinheiro público.
A aversão ao mercado e o apego equivocado ao Estado paternalista e provedor chegou ao ponto de, anos atrás, alguns autores “transgressores” sugerirem, seriamente, que o governo deveria pagar um salário aos escritores. Oi? Mas este apego também se manifesta quando agentes do mercado defendem uma lei do preço único, que proíbe redes de comércio eletrônico de oferecer descontos nos livros – o que só serve para prejudicar e espantar, justamente, os… leitores e compradores.
Essa dependência do poder público se torna potencialmente ainda mais problemática quando livros e autores deixam de ser publicados para não desagradar ao governo, que garante a viabilidade econômica das empresas privadas. Já aconteceu, com mais frequência do que você imagina. Durante anos, a instrumentalização política de programas federais, estaduais e municipais de compra de livros para distribuição nas redes públicas de ensino foi colocada a serviço da implementação de uma agenda nas salas de aula, mas este é outro assunto.
(Em todo caso, não deixa de ser sintomático que, na última eleição, um campo político tenha tentado se apropriar do monopólio do hábito da leitura, com estrelas postando fotinhos nas redes sociais segurando um livro ao lado da urna; e que a FLIP, nos últimos anos, tenha se transformado na Festa Internacional da Lacração: justamente no período em que o mercado editorial mais encolheu.).
Infelizmente, essa crise não vai passar com apelos à solidariedade e a campanhas do tipo “dê um livro de presente no Natal”: ainda que bem intencionadas e sinceras, essas iniciativas são tão eficazes quando os abraços na Lagoa contra a violência no Rio de Janeiro. No cenário atual, só se apresentam dois caminhos: tentar dar uma sobrevida a um modelo agonizante, na esperança de uma volta ao passado, ou se adaptar à nova realidade, desenvolvendo novas estratégias para o futuro, na certeza de que nada será como antes. (Fonte:G1)