Um avião na selva e poucas notícias no ar
O dia era 3 de setembro de 1989, o Brasil estava a pouco mais de dois meses de eleger seu primeiro presidente pelo voto direto, depois da Ditadura Militar; os anos 80 chegavam ao fim deixando um legado cultural e histórico gigantesco em toda a sociedade e imaginava-se que o noticiário jornalístico acontecia de forma célere. Nesse contesto, um Boeing 737-200 da Varig decola de Guarulhos (SP) com destino a Belém, tendo Marabá como sua última escala antes de chegar à capital. Na verdade, seria a última viagem mesmo.
O equipamento foi submetido a pouso forçado na selva porque o piloto havia errado a rota devido a uma vírgula (isso mesmo, uma vírgula), pois houve uma confusão na hora de se programar os instrumentos do avião, que deveriam conter a rota 27,0°, e não 270°. Com isso, em vez de se dirigirem ao norte, em direção a Belém, acabaram indo para o oeste, já no Estado do Mato Grosso.
Leia mais:Imagine a situação dos sobreviventes: perdidos na selva e ainda não havia telefone celular, aparelho do qual ninguém tem coragem de dar um passo sem ele hoje em dia. As notícias circularam a conta gotas, até que com o passar de muitas horas, alguns sobreviventes que não estavam feridos conseguiram ajuda.
Ao final, restaram 42 sobreviventes, sendo 36 passageiros e seis tripulantes; e 12 pessoas morreram, entre as quais três de Marabá e um desses três era Marcos Giovani Mutran, irmão do então prefeito Nagib Mutran Neto.
O CORREIO do TOCANTINS circulava apenas uma vez por semana (as sextas-feiras) e havia lançado sua última edição no dia 1º de setembro. A próxima edição só voltaria às bancas no dia 9. Nesse espaço de tempo, o que se via eram atualizações pelas rádios (meio mais instantâneo de notícias) e no noticiário de TV.
Coube aos jornalistas da época garimpar e filtrar informações, até que no dia 9 o jornal circulou com a seguinte manchete “Iniciado trabalho de perícia para apurar queda do Boeing”. O noticiário trazia as últimas informações sobre o caso e seus desdobramentos.
As páginas em preto e branco detalharam a repercussão do caso, que alterou a programação do desfile de 7 de setembro, motivou notas de pesar da Câmara Municipal e também da extinta Associação Marabaense de Imprensa (AMI).
Se naquela época a escassez de fontes oficiais para gerar notícias era grande, o que se enfrenta nos dias atuais é justamente o contrário, mas os desafios para o bom noticiário continuam, o que mudou foi apenas o formato das dificuldades.
Se uma tragédia daquelas ocorresse nos dias de hoje, a enxurrada de fotos e de informações desencontradas e inverídicas (às vezes de maneira proposital) iriam poluir as redes sociais, de modo que o jornal precisaria fazer como tem feito, apurar os fatos e dizer apenas o que é preciso, mas também tudo que é preciso.
Casos como esse do Boeing 737 mostram que ao bom jornalismo, historicamente, foi dada a tarefa de vencer a desinformação, hoje gerada pela concorrência desleal das famosas “fakes” e das fotos sem contexto
Efeito colateral do massacre
A foto emblemática capturada pelo saudoso Miguel Pereira mostrando os 19 sem-terra mortos pela Polícia Militar, jogados na carroceria de um caminhão, fruto do episódio que ficou conhecido como “Massacre de Eldorado” tem muitas coisas a nos dizer.
Um fato que passa despercebido é que a edição de nº 580 que estampava a tragédia na capa foi a quarta edição com policromia (páginas coloridas). O jornal começava a se modernizar, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, trazia nas suas páginas uma notícia que nos mostrava que ainda estávamos longe de ser modernos como sociedade.
A segunda foto da página (um registro de Evangelista Rocha) mostrava o cenário caótico na Curva do S, palco do sangue, com policiais armados andando em meio a sobreviventes desorientados e curiosos. De lá para cá, as coisas mudaram. A própria rodovia que foi manchada pelo sangue dos camponeses deixou de ser estadual (PA-150) e foi federalizada (virou BR-155).
Aquele fatídico 17 de abril se tornaria um divisor de águas. A morte dos sem-terra provou um efeito colateral que viria por fortalecer a luta pela reforma agrária no País. De acordo com o advogado José Batista Afonso, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), até 1996 havia apenas 80 Projetos de Assentamento (PAs) na região, depois foram criados 436. “Isso ocorreu porque a violência não inibiu o processo de organização dos camponeses”.
Outro fator importante foi a criação do Ministério da Reforma Agrária, uma resposta do governo federal ao problema. Além disso, Marabá passou a sediar uma Superintendência Regional do Incra, Justiça Federal e o Ministério Público Federal. Da mesma forma, as Vara Agrárias também foram instituídas, assim como a Ouvidoria Agrária Nacional.
Por outro lado, de lá para cá, mais de 200 assassinatos de sem-terra foram registrados pela CPT, sendo oito chacinas, a mais recente delas a chacina de Pau D’Arco, em 2017. Nesse contexto, várias lideranças foram mortas, como Dezinho, João Cláudio e Maria do Espírito Santo, Dorothy Stang, dentre outros.
Os conflitos pela posse da terra continuam na região, que abriga hoje 156 imóveis ocupados por diferentes grupos de camponeses, que somam aproximadamente 16 mil famílias em permanente conflito.
Se para os movimentos sociais, o massacre foi um divisor de água, para a Polícia Militar também. O coronel da reserva, Antônio Araújo, que na época do massacre trabalhava na Casa Civil do governo do Estado, classificou o episódio como lamentável, sob vários aspectos.
Ele lembra que a tropa empregada na missão não estava devidamente preparada, pois não tinham armamento apropriada para aquele tipo de conflito, como bombas de efeito moral, escudos e armas com balas de borracha, ao invés de armamento letal.
“Foi um grande equívoco, um grande erro”, resume Araújo, acrescentando que, a partir daquele episódio, a Polícia Militar passou por uma reformulação, de modo que hoje em dia a tropa empegada nesse tipo de missão é o Comando de Missões Especiais, que tem o armamento e treinamento apropriado. (Chagas Filho)