Correio de Carajás

Coração de Beija-Flor no Bairro Belo Horizonte

Foi numa quarta-feira de julho, dessas que o vento começa a ensaiar seus passos sobre a orla do Tocantins, que me perguntaram se eu era mesmo delicadeza o tempo inteiro. A pergunta veio da Marluce, amiga de infância da minha irmã Miriam, que andou lendo uns escritos meus no Correio de Carajás e umas colunas que escaparam do papel no tempo em que ainda se esperava a entrega do jornal na calçada, bem cedinho.

Respondi como quem foge da primeira garfada de jambu: com um riso meio dormente, meio sincero. Disse que sim, talvez, em alguns pedaços. Mas também há secas, enchentes, marés ruins, e um ou outro vendaval que ninguém segura, nem com reza de benzedeira da Folha 33. Há dias em que sou igarapé manso, mas noutros, rio em fúria, daqueles que comem a margem e a esperança de uma só vez.

Nos últimos dias desse fim de julho, quando os ipês fingem cor mesmo sem florir e as nuvens parecem suspensas por anzóis, andei pensando numa mulher com alma de areia sumida do Geladinho. Uma daquelas figuras que a gente só entende depois de anos de escuta. Dona Maria Eden — que foi minha sogra, foi sem exagero, maior exemplo de resistência que conheci de perto.

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Dona Eden nasceu na vizinha Itupiranga, mulher de feições firmes e fala mansa, trazia no peito um coração de beija-flor: pequeno, mas danado de ligeiro. Batia acelerado cada vez que ouvia os netos chegarem correndo pelo corredor da casa simples ali no Belo Horizonte, perto da Obra Kolping.

Lembro dela com seu vestido florido, sentada na cadeira de balanço, uma chaleira no fogão e uma Bíblia gasta dentro de seu quarto. Me ensinou a comer farinha com banana e a benzer ferida com água de arroz. Era suave com os duros e terna com os tristes. Sabia da vida, dessas sabedorias que não se aprende em faculdade nem se acha em Google ou no Chatgpt.

Na última vez que a vi, estava deitada numa cama da UTI do Hospital Regional. Rodeada por netos, nora, filhas, e sempre com um sorrisinho de canto de boca, daqueles que parecem guardar um segredo que só as mulheres muito vividas conhecem. Me olhou com um olho só, porque o outro já parecia perdido na memória, e disse: “Ainda briga com o mundo, menino?”. E eu, como quem toma um tapa de saudade, só consegui sorrir e segurar sua mão de afagar os netos.

Ela teve sua cota de cercos: o racismo escancarado da Marabá antiga, o machismo de um marido que morreu anos antes mas deixou marcas, a dureza de cuidar da casa, dos quatro filhos, de fazer chopp para vender e conseguir ajudar na educação deles.

Junto comigo, ela escreveu histórias. Mesmo sem saber, me ajudou a contar ou recontar muitas histórias antigas da cidade. A gente costuma romantizar as avós. No meu caso, não convivi com nenhuma. Tinham morrido antes de eu nascer.

Conheci algumas que os netos torciam o nariz para seus cabelos brancos. Eram ranzinzas, mandonas e queriam tomar de conta da vida dos meninos. Mas Dona Maria Eden não. Ela era avó de verdade, com todas as contradições, amorosos exageros e a sabedoria de que amar é mais importante do que estar certo.

Devo confissões a ela. Pela imaturidade, pelos conselhos que me deu em relação a sua filha e, também, para as demais áreas da vida. Pela arrogância de quem acha que juventude é desculpa pra tudo.

Mas essa crônica, se serve de alguma coisa, é uma tentativa de abraço tardio. Daqueles que a gente dá em pensamento, enquanto ouve o rádio tocar Odair José ou um hino da Harpa Cristã.

Sei que não sou feito de delicadezas o tempo todo. Mas algumas pessoas nos emprestam essa doçura por tabela. Dona Maria Eden era dessas. Um poema que virava poesia quando sorria. E pra quem não entendeu: o poema a gente lê, decora, guarda. A poesia? A poesia a gente sente, toma conta, se espalha na pele, como o vento da Orla num fim de tarde sem pressa.

Dona Maria Eden era cristã de verdade. Dias atrás eu disse para um amigo que, se minha sogra quisesse voltar em forma de passarinho, que escolhesse ser beija-flor. Porque só quem tem o coração acelerado demais é capaz de distribuir tanta ternura em voos tão breves.

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.