Eu vou ao Círio todo ano por um motivo que não é promessa, nem tradição de família. Sou evangélico e, ainda assim, na manhã da romaria eu pego a câmera e sigo para a Velha Marabá, porque ali a cidade se mostra inteira. Há quem chore de joelhos, quem cante desafinado, quem erga crianças nos ombros para ver a berlinda passando. O rio Tocantins respira junto, a maré humana avança devagar, e a fé fica visível como luz de lamparina: pequena, insistente, suficiente. Entre um clique e outro, dou sempre um tempo para ouvir histórias; a romaria tem disso: o passo cadenciado solta memórias.
Foi assim que reencontrei José Antônio, servidor público, 60 anos, óculos de aro fino e um cuidado no falar que me fez diminuir a pressa. Ele pedia licença aos romeiros para não atrapalhar e, quando passamos em frente a uma barraca de água de coco, ele me contou que estava ali procurando coragem. “Vim pedir paciência, não milagre”, disse, e sorriu de canto. O assunto não era doença nem desemprego. Era amor. Mas desses amores que resistem ao manual.
A esposa dele tem 50 anos e se chama Carina. Casaram-se jovens, criaram dois filhos, são avós de duas crianças que correm de sandália e riso fácil pela casa. Carina sempre foi o pilar da cozinha e do domingo, dessas que sabem o ponto do tucupi, que fazem lista de compra e guardam recados na memória. “Sempre foi muito apegada à família – e ainda é”, reforçou ele, como quem precisa que a cidade inteira entenda. Só que há pouco mais de um ano, durante uma pendência judicial, Carina conheceu uma servidora do Fórum – e se apaixonou.
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“Foi nas barbas da Justiça que ela esbarrou no que faltava e eu nem sabia”, confidenciou José Antônio, sem raiva, sem heroísmo, apenas com a calma triste de quem tenta manter a casa no prumo. Desde então, uma vez por semana, Carina dorme na casa da nova amiga. Volta no dia seguinte, arruma o quarto dos netos, separa a roupa do marido, conversa sobre política, faz piada com o preço do peixe. Ele, por amor e por medo de escândalo, decidiu não expulsá-la; por enquanto, prefere segurar as pontas e passar a roupa de cama. “Eu a amo tanto”, repetiu, “que não sei trancar a porta.”
Caminhamos mais alguns metros. A Berlinda girou no final do bambuzal e o povo gritou “Viva Nossa Senhora!”, e eu pensei como é amplo esse “nossa”. Nossa de quem crê, de quem duvida, de quem fotografa. José Antônio retomou o fio: Carina já quis mudar de casa, já quis assumir publicamente, já ensaiou um anúncio para os parentes. Mas, por ora, prefere o anonimato – e talvez essa seja a parte mais humana da história: amar também é aprender a medir o tempo do outro.
Em Marabá, onde todo mundo conhece alguém de todo mundo, a notícia de um amor escapado corre mais rápido que a chuva de fim de tarde. No entanto, nada vazou. A família segue reunida nos aniversários, o neto mais velho leva a bola para o quintal, a caçula pede para ver desenho. Carina, quando chega, traz pão da padaria da esquina e sorri com o mesmo cuidado de sempre, mas com um silêncio novo nos olhos. “É como se ela tivesse encontrado um espelho e se visto inteira”, arriscou o marido. Não falou o nome da psicóloga, não precisava.
Parei de fotografar por um momento. Havia um casal idoso caminhando de mãos dadas, um rapaz tatuado chorando baixo, uma mulher empurrando um carrinho de bebê. Pensei em como a cidade cabe na romaria: as culpas, as escolhas, as incompletudes. José Antônio suspirou. Disse que não sabe até quando dá para manter as duas vidas no mesmo telhado. Disse que tem medo do julgamento, dos irmãos da igreja, da fofoca na repartição. Mas disse também que, apesar da dor, descobriu que o amor não é trincheira; é ponte. “Eu queria que fosse simples”, confessou, “como baralho na mesa: carta alta ganha. Mas não é.”
Quando a procissão passou por nós outra vez, ele tirou o boné, mostrou a careca, fez um gesto respeitoso e ficou em silêncio. Eu voltei a fotografar. O Círio, em Marabá, tem a doçura de quem aprende a conviver – com rios que crescem, com ruas que mudam de nome, com lembranças que insistem. Ao final da manhã, José Antônio se despediu. Disse que iria para casa ver o almoço e, quem sabe, tirar um cochilo. Pensei em Carina, em sua coragem tímida e em seu desejo de assumir o que sente. Pensei na servidora pública formada em direito, nos papéis que começaram tudo, na causa contra a energia que virou outra corrente, mais íntima e sem manual de leitura.
Fiquei com a impressão de que, em certas fases da vida, o amor escolhe caminhos laterais como quem foge do trânsito na Transamazônica e pega uma rua mais estreita, mas chega. Às vezes chega pelo lado oposto daquilo que a gente esperava. Às vezes chega sem pedir desculpa. E, quando chega, não é tarde: é tempo. Tempo de reaprender o vocabulário, de reorganizar a sala, de escutar o que se sente e o que se pode.
No fim do dia, revisei as fotos: mãos entrelaçadas, um menino no ombro do pai, uma vela acesa contra o vento, um rosto cansado sorrindo. Se me perguntarem o que vi no Círio, direi que vi fé. E, no meio dela, vi também o amor – esse bicho imprevisível – surpreendendo aos cinquenta, aos sessenta, aos oitenta, surpreendendo para qualquer direção. Porque amar, em Marabá ou em qualquer lugar, continua sendo a arte de caminhar junto, mesmo quando o caminho inventa curvas novas.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras. (Essa excepcionalmente na quarta porque o amor não pode esperar tanto).
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.