Correio de Carajás

Castanheiras chorando e a Amazônia sem cronistas

Está decretado: crônica, mesmo, não escreverei hoje.

Alguns desvãos pessoais rodeados pela bruteza dos desmatamentos, a indelicadeza com os rios, a gastura do lixo nos riachos que cortam a cidade, a floresta encantada nos arredores de Marabá cada vez mais desaparecida, primo Antônio Luiz angustiado pelo câncer no pulmão. Insustentáveis existências.

Deste lado da Amazônia, onde o mundo respira por entre o verde ainda não totalmente carbonizado, o som do motosserra também canta. Já vi castanheiras chorando sem consolo, araras dispersas onde antes dançavam em bando no céu. E o boto, ora, o boto, que era encanto e agora é só memória perseguida, vítima da ganância dos que confundem lucro com permanência.

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Por mim, se eu soubesse, transformaria desenganos em poemas. Coisas bonitas feito a feiura atraente da libélula, a palavra alada é mais bonita que o bicho categorizado. Cheio de voos, asas inquebráveis e as marias-moles costurando infâncias e avoações. Por vezes penso se as marias-moles também habitam o igarapé, feito espíritos meninos a brincar entre os açaizeiros, cuidando das águas que ainda resistem.

Os vagalumes também. Testemunhei abundância de fadinhas piscantes, pirilampos depois de um dia chuvoso e o junco acendendo e apagando. Na floresta, eram tantos que parecia céu caído em festa. Não os vejo mais nem em Marabá, nem em Parauapebas. A escuridão agora é tecnológica, de postes frios e helicópteros noturnos.

Insisto, aqui não será uma crônica. Nem um romance, um ensaio e menos ainda assinaturas literárias “vencidas” pelos posts e o jornalismo menos reporteiro que me penetra a veia todos os dias, numa aceleração errática. Posta e depois corrige! Dá primeiro do que todos. Corrija depois — ou nunca.

Talvez, repórteres novéis sejam assim, dessa forma. Inteligentes artificiais, pouco interessados nos abissais, nas escutas e nas interrogações infantis primorosas. Provavelmente, não terei a nostalgia dos tomados pelas bigs techs. Algoritmos não percorrem trilhas no mato, não escutam a onça, nem sabem o peso de um pirarara sem água.

Por que tanta divagação desenxabida? Não sei certeza. Talvez porque não quisesse falar sobre facções criminosas e a impossibilidade de reversão do Estado seletivo na maioria das vidas que se ausenta na minha cidade. Nem dos garimpos ilegais a céu aberto, nem da lama tóxica que mata o rio e adoça a boca do garimpeiro.

Não dá para costurar uma prosa poética entre homicídios, ataques a provedores de Internet, chacinas a qualquer instante e um repórter sempre contando. Assim: quantos tiros (já viram banalidades)? Tinham crianças?

Não perdi ainda a virtude da desconfiança. Resta algum sobejo de inquietação para passar, nunca o mesmo, na esquina que também se derrete no sol que cai em Marabá. Da árvore que estava ali, na semana passada, por mais de 100 anos e resta um toco. Da sumaúma de cinco séculos, tombada por ordem de cima. O céu, de tão triste, nem chorou.

Vou parar de me esquivar de escrever. É violenta mesmo a Cidade sem poemas. Ou somente alguns comerem a poesia de gosto inquietante. “Ovula na minha boca”, vi por aí atrás de uma mata, perto do 52º Batalhão de Infantaria de Selva.

O Comando Vermelho domina as ruas de Marabá. As investigações dos grupos especializados da polícia dizem mais. Que as facções mandam também no sistema carcerário daqui, que mudou para melhor sua estrutura, mas nem tanto para quem ainda reina dentro e fora dos territórios. Em algumas escolas de Marabá, as salas de aulas estão divididas, com os alunos se posicionando nesta ou naquela facção.

Dias atrás, numa escola que dou aula, um aluno fez uma prova no final da tarde e não amanheceu na cidade no dia seguinte, porque fora ameaçado por um membro da fação rival. Os pais o tiraram da cidade imediatamente.

A falta de poema gera o crime. Ou será que há poesia apenas para uns escolhidos das exposições anuais?

E a Amazônia queima sem cronistas.

 

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.