Estive com febre esta semana, uma disenteria braba. Foi na terça-feira. Acabei não indo trabalhar boa parte do dia e também não comi nada. Em dias assim, como dizia minha mãe, quem tem medo de ir ao banheiro não come.
Deu saudade do chá de casca seca de laranja que minha mãe fazia quando eu era pequeno. Naquele tempo ninguém tomava suco de laranja, então, precisava descascar para chupar o fruto. Tinha gente que executava tão bem o ofício que tirava a casca inteira. Eram exatamente essas ou as maiores que se usava para secar. Mamãe colocava numa pendurada numa cordinha ou na parede mais baixa, nos caibros baixos. Depois de alguns dias, estava pronta para fazer chá quando os meninos (e olha que tinha menino lá em casa) ficavam doentes.
Aí, pra acompanhar, não podia faltar um AAS infantil. Não tinha sabor melhor. Era mais gostoso do que Coca Cola gelada.
Leia mais:A “Cozinha do Tio Ulisses” é um restaurante particular e íntimo que montei em minha casa. Foi durante a matança da covid-19. Tempo em que muitos morriam também de fome e a classe média e os ricos comiam fartamente. Nunca beberam tanto vinho e uísque. Enchemos os rabos.
Até hoje, funciona porque perdi o encanto com os restaurantes de preços assaltantes por pratos mais ou menos e ruins. Ainda vou em alguns. Assim, com o “Cozinha do Tio Ulisses”, batizado por minha sobrinha Ester de Souza, destampei uma memória da cozinha lá de casa que julguei sem valor.
Curioso é que éramos classe média baixa aperreada, mas na cozinha simples de mamãe (onde havia várias irmãs) tinha quase sempre “empregadas” para lavar a roupa e auxiliar no fazimento dos pratos.
Mas Miriam, Nazaré e Ana Glediston, as mais velhas, ajudavam também. E, quando necessário, lavavam e passavam também.
Quando papai bamburrou em Serra Pelada, as empregadas eram mais presentes. Dona Joana Augusta não ia tanto lá em casa, mas quando vinha trazia doce de caju. Uma delicadeza aquele feito com o quintal dela ou cajus arranjados nos caminhos de uma cidade mais “pomarizada” do que hoje. Era delicioso o gosto da lenha impregnado no fruto e um tesão precoce pelo melado.
Minha irmã, Nazaré Pompeu, quando voltava de férias do internato em Pernambuco, sempre ensinava pratos novos pra gente. Aos poucos, sem perceber, eu ia aprendendo. Hoje, na “Cozinha do Tio Ulisses”, invoco a peixada que aprendi com papai, o estrogonofe que Nazaré me fez aprender, a farofa de cuscuz, que leva de quase tudo que há na despensa:
Muito tomate, pimentão, cebola roxa, alho, coentro, cebolinha, sal a gosto, pedaços de um monte de outras coisas também gostosas.
A peixada de papai sempre levava pedaços de batata inglesa e de cenoura, ovos cozidos, pimenta do reino e o tucunaré em postas ou no filé (cuidado pra não se desmanchar no bafo).
Mas também pode ser com pescada branca, tambaqui, ou outro peixe de água doce. Quando íamos pescar nos riachos, o cará era cozido na beira do rio Sororó, logo depois de pescado.
A “Cozinha do Tio Ulisses” é uma frescura de quem tem acesso, agora, ao alimento abundante e privilegiado. Quem não depende da caridade alheia nem da culpa disfarçada dos outros. Imagine ter de esperar, todos os dias, por uma quentinha caridosa.
Todo mundo, no “meu governo”, não terá pelo caminho da existência gente que empate direitos básicos. Como comer.
Amanhecesse, a fulana, o cara e a récua de filhos teriam o pão, o ovo, o café, a fruta e até mangulão e bolo de arroz, porque paraense nascido em Marabá não pode ficar sem essas guloseimas. Além, é claro, de almoço suficiente, uma janta e um docinho sem diabetes. Pelo menos.
A “Cozinha do Tio Ulisses” é um espaço íntimo, nem todos experimentaram meu corpo fazendo algo à beira do fogão. Não estou viçando. É uma crônica sobre os que comem esbanjadamente e os que são comidos pelo sovino da cidade exclusiva.
Sirvo pratos afeitos, e manjares inventados no toque da pimenta dedo-de-moça, no gengibre e, como minha classe é média, tem sempre à disposição um suco de laranja sem açúcar e sem gelo. É hora que dou minha cozinha com todas as memórias. Cruzo.
Comer não é um ato político panfletário nem um favor que se faz. É gozo natural e quando me sirvo para alguém, com apetite, lembro do cheiro de minha mãe descascando laranja depois de algum almoço de domingo. Adorava as tiras das cascas enganchadas nos caibros e os seios fartos dela.
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.