Correio de Carajás

Carta aos sem-Norte

Jornalista do Correio escreve carta-crônica de Ano Novo

Convocamos, para este especial de Ano Novo, alguns membros de nosso time de jornalistas para nos ajudar a olhar o mundo com outros olhos. Que nos contassem de coisas que vimos, ouvimos e sentimos, dos temas espinhosos que estiveram em reportagens e manchetes, mas agora estão sendo mostrados por outro olhar, escritos por outras vivências. Com sua literatura, com o seu modo de contar uma história, com seu jeito de escrever. Cartas com palavras para desatar não só um nó, mas vários atados durante este ano.

Foi a maneira que encontramos para que, nesta nova promessa de ciclo novo, todos nós pudéssemos nos transformar e encontrar uma certa “cura” pela palavra.

No princípio de todas as coisas, a palavra.

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O poder das palavras não está nelas mesmas, como dizia Rubem Braga, mas no jeito como as lemos. Pois também desejamos que assim seja feita esta sua leitura. Que esta carta chegue até você para ser lida de corpo inteiro. Mesmo que esteja longe de Marabá.

 

Carta de Chagas Filho

Escrevo para os que, vivendo no Norte, não têm Norte; escrevo para os que andam pelas calçadas, mas não entram nas lojas; escrevo para os filhos esquecidos de Marabá, que não têm Instagram, nem seguidores; porque estão ocupados demais se escondendo nas beiradas dessa terra “relicária e graciosa”, em lugares nem tão graciosos assim; escrevo para os que, vendo o Ano Novo chegar, não veem o que há de novo no Ano Novo.

Escrevo repetido, sim, porque, às vezes, é preciso falar sempre e sempre e repetir, de tal modo, que até mesmo aqueles que não se importam, se importem, ainda que não façam nada.

Dedico essa carta, com todos os seus caracteres e caraterísticas, e com todos os seus espaços também, porque é preciso haver espaços para aqueles que nunca têm espaço, porque no ponto de ônibus não há, nas filas dos hospitais não há, na mendicância da Antônio Maia, não há… espaço.

Mas eles estão ali, quase pisados pelos passos apressados dos que têm…espaço.

Escrevo para aqueles que olham famintos para as praças de alimentação que se esparramam pelos passeios públicos, salivando a dança dos espetos, que bailam entre as mãos do garçom e as mesas prontas de gente.

Escrevo para aqueles que, vivendo na cidade, não têm, para si, uma cidade. Têm apenas fragmentos do que poderia ser… uma cidade, porque vivem nas encostas da sociedade, largados à esperança do Ano Novo, que vale tanto quanto nada.

Escrevo para os sem-praça, para os sem-água, para os sem-teto, para os sem-remédio, para os sem-2022!

Escrevo para aqueles que vivem um dia de cada vez, sem Norte, debaixo das pontes, debaixo dos aviões, sob os tetos de Brasilit das quitinetes quentes, cheias de crianças famintas.

Escrevo para os que moram dentro das cabanas amontoadas nos morros da Coca-Cola.

Escrevo para aqueles que carregam a TV na cabeça, com os pés metidos na água que entra pela sala nas madrugadas chuvosas.

Escrevo para aqueles que não têm na conta bancária os “lauréis da glória”.

Escrevo para aqueles que não sabem o que diabo vem a ser um laurel.

Escrevo para aqueles que não têm conta bancária, embora todos saibam o que é isso.

Escrevo para aqueles que não aparecem nas colunas sociais, mas que mancham de sangue os cadernos de polícia ou as reportagens sobre desemprego.

Escrevo para aqueles que tanto faz se é dia um ou dia trinta e um.

Escrevo para aquele “um”.

Aquele senhorzinho, que levanta cedo e embala seu carrinho, cheio de sucata e coisas que ninguém quer mais e passa o dia catando e catando, em troca de poucos, pouquíssimos Reais.

Para aqueles cujo Ano Novo tem sido uma velha repetição de uma história repetida, repetida, mil vezes repetida, desde que Marabá é Marabá.

Escrevo para aqueles cujo “marulhar do Tocantins” não é tão deslumbrante como nos mostram os stories, os reels, os feeds, as redes sociais.

Escrevo para os sem rede…

Para os sem social…

Escrevo para a mulher grávida assassinada sem Registro de Nascimento.

Escrevo principalmente para aqueles que não sabem ler.

Mas alguém há de ler para eles… essas palavras duras.

Chagas Filho