Correio de Carajás

Quem tem filho grande é elefante

Jornalista do Correio escreve carta-crônica de Ano Novo

Convocamos, para este especial de Ano Novo, alguns membros de nosso time de jornalistas para nos ajudar a olhar o mundo com outros olhos. Que nos contassem de coisas que vimos, ouvimos e sentimos, dos temas espinhosos que estiveram em reportagens e manchetes, mas agora estão sendo mostrados por outro olhar, escritos por outras vivências. Com sua literatura, com o seu modo de contar uma história, com seu jeito de escrever. Cartas com palavras para desatar não só um nó, mas vários atados durante este ano.

Foi a maneira que encontramos para que, nesta nova promessa de ciclo novo, todos nós pudéssemos nos transformar e encontrar uma certa “cura” pela palavra.

No princípio de todas as coisas, a palavra.

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O poder das palavras não está nelas mesmas, como dizia Rubem Braga, mas no jeito como as lemos. Pois também desejamos que assim seja feita esta sua leitura. Que esta carta chegue até você para ser lida de corpo inteiro. Mesmo que esteja longe de Marabá.

 

Carta de Luciana Marschall

 

É quarta-feira, 29 de dezembro, e em dois dias estrearemos 2022. Estou na redação do Correio de Carajás em Parauapebas e mascarada meses após praticamente ter descartado o uso da proteção no ambiente profissional – assim como todos os colegas – após receber duas doses de vacina contra a covid-19.

Não sou a única que voltou a vestir o equipamento, os colegas também estão protegidos. O motivo? Pelo menos quatro de nós estamos voltando de uma gripe fortíssima, sobre a qual você já deve ter lido.

Trata-se de uma epidemia de H3N2 que está abarrotando as unidades de atendimento em saúde em várias cidades. Eu me vacinei também contra a gripe, mas essa nova cepa foi mais rápida que as empresas farmacêuticas e se espalhou antes da atualização do imunizante, prevista para o próximo ano.

Antes de 2020 estaríamos tossindo, espirrando e fungando sem qualquer peso na consciência, mesmo não havendo cobertura sobre nossas bocas e narizes. Acontece que o ano passado nos mudou, a nós e ao mundo. Aprendemos a ter medo (justificado) de doenças virais.

O Brasil perdeu, até essa data, quase 620 mil pessoas para o novo coronavírus: são mais de duas Marabás sepultadas. Todos nos despedimos de alguém que amamos por culpa dele. O pico de mortes registradas no país ocorreu em março de 2021, cerca de um ano após o anúncio do primeiro caso de contaminação no território.

Após a corrida desenfreada da ciência por uma maneira de proteger as pessoas contra o vírus mortal, no final de 2020 surgiram as vacinas e em janeiro de 2021 as primeiras doses começaram a ser aplicadas no Brasil.

Conforme os dados de registro civil do país, novembro foi o oitavo mês seguido com queda no número de mortes por covid-19, tendo registrado 94% menos mortos que em março. É consenso que esses dados são resultado da vacinação e sequer preciso entrar na discussão técnica sobre os imunizantes serem eficazes e seguros, os números falam por si.

Mesmo figurando como uma das piores nações na condução das medidas de combate à pandemia, hoje a cobertura vacinal completa (duas doses) do Brasil ultrapassa 80% da população, sempre façanhosa e acostumada desde criancinha a ser vacinada, fruto de uma época em que os governos sequer perguntavam se alguém queria ou não tomar vacina.

Lembro, quando estudante, das equipes de vigilância epidemiológica chegarem nas escolas e saírem distribuindo agulhada em geral, enquanto o Zé Gotinha fazia o que o Zé Gotinha faz. Sei lá quantas doses de vacina contra hepatite eu já tomei nessa vida: “Esqueceu a carteirinha? Não tem problema…” e lá vinha a injeção.

Apesar disso, inspirada em movimentos antivacina que crescem mundo afora, uma parcela da população brasileira decidiu fazer biquinho e dizer “não quero” para os imunizantes contra a covid-19, mesmos estes tendo sido aprovados pelas principais agências reguladoras do mundo. A discussão é avalizada por um governo que prefere transformar teorias da conspiração em discurso político para acenar à base eleitoral a confiar em renomados cientistas e, consequentemente, salvar vidas.

Acontece que essa birra infantil e gratuita coloca a vida do outro em risco e atrasa, ainda mais, a nossa tão sonhada “volta à normalidade”. Não há muito o que argumentar para que essas pessoas entendam o óbvio: mais gente morreria caso as pessoas não se vacinassem e ainda vai morrer um tanto que recusa se vacinar.

Se quisermos em algum momento controlar de forma eficaz essa pandemia precisaremos que você abandone esse negacionismo confortável (e inexplicável) e também se vacine. Pensando mais despreocupadamente, enquanto mastigo minhas castanhas, eu nem deveria estar explicando isso para você, leitor, porque quem tem filho grande é elefante, mas meu editor mandou eu dar um puxão de orelha aqui e obedeço porque preciso pagar o aluguel, já que continuo viva, graças às vacinas.

 

Luciana Marschall