O Procurador-Geral de Justiça, Gilberto Valente Martins, do Ministério Público do Estado do Pará, pediu a prisão preventiva do prefeito de Canaã dos Carajás, Jeová Gonçalves de Andrade, por crime de responsabilidade.
Ele é investigado pela compra, pela Prefeitura Municipal, de um terreno que supostamente pertencia à White Tratores Serviços de Terraplenagem Eireli, empresa de João Vicente Pereira do Vale, conhecido como Branco da White.
Leia mais:A investigação da Procuradoria-Geral aponta que o município pagou quase R$ 4 milhões pelo imóvel onde foi construído o novo terminal rodoviário da cidade e, além da supervalorização do terreno, os trabalhos conduzidos em Belém identificaram que não havia necessidade de desapropriação.
Gilberto Martins pediu a condenação de Jeová Gonçalves de Andrade baseado no Decreto-Lei 201/67, que dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores e que sujeita o gestor municipal a uma pena de dois a 12 anos de reclusão, caso condenado. A legislação estabelece que a condenação acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública.
O procurador destaca que no caso registrado em Canaã dos Carajás o prejuízo ao patrimônio público é inconteste, pois a desapropriação foi ilegal e desnecessária, além de superfaturada.
“O Judiciário tem entendido que organizações criminosas que delapidam o dinheiro público são integradas por pessoas, tão ou mais perigosas, do que aquelas que praticam os chamados ‘delitos de sangue’ – que sempre tiveram tratamento penal mais rigoroso – pois os atos de corrupção, induvidosamente, atentam contra as condições de vida de toda a população, notadamente em municípios como Canaã dos Carajás, que recebe milionárias quantias de royalties que não refletem o desenvolvimento municipal”, ressalta.
Gilberto Martins justifica o pedido de prisão entendendo que, embora este implique no sacrifício da liberdade individual, tem por fundamento o interesse social, diante da presença de requisitos autorizadores, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal.
Entre estes requisitos, cita a garantia da ordem pública e da ordem econômica, somadas à existência de provas da materialidade dos delitos e indícios “mais que suficientes” das autorias dos crimes.
Ao explicar a necessidade de garantia da ordem pública, o procurador destaca que Jeová “tem a prática de crimes contra a administração pública como profissão, forma de sustento e enriquecimento”. O procurador destaca que o gestor municipal já foi denunciado duas vezes por crimes de responsabilidade e crimes de licitações.
Explica que a primeira ação foi recebida pela Seção Penal do Tribunal de Justiça do Pará em 2 de julho deste ano, quando não foi concedido o afastamento do cargo ou prisão preventiva. Para o procurador-geral, demonstra-se não se tratar de um crime episódico, mas sim de “conduta criminosa que vem sendo demonstrada em várias contratações da administração pública, sob responsabilidade direta do denunciado”.
Para ele, não parece existir dúvida de que a liberdade do denunciado atenta contra a ordem pública e que, caso permaneça livre, continuará a dilapidar o patrimônio público.
Ao defender a necessidade de também ser garantida a ordem econômica, por meio da prisão, o procurador relembra que no processo utilizado como exemplo foram percebidos desvios de R$ 240 mil. Agora, destaca, o desvio é de quase R$ 4 milhões. “De outra forma, certamente o esquema criminoso continuará a dilapidar patrimônio público de Canaã dos Carajás”, diz, referindo-se à possibilidade de não ser concedida a prisão preventiva do prefeito.
O procurador também solicita, em caso de não decretação de prisão, que seja deferida a suspensão da função pública, utilizando o mesmo argumento de que Jeová já responde a dois processos criminais.
“A reiteração criminosa e os fatos narrados e comprovados na exordial acusatória demonstram mais do que suficientemente que o Prefeito Jeová Gonçalves de Andrade não possui condições de exercer a função pública e administrar o erário. O que se vê é que Jeová Gonçalves de Andrade está dilapidando o serviço público municipal e assim vai continuar até ser detido pelo Judiciário”, acredita o procurador-geral.
Ele defende que as provas apresentadas ao Tribunal de Justiça estão muito além dos meros indícios, suficientes para o recebimento da denúncia. “São provas cabais, documentais e determinantes dos delitos praticados no procedimento licitatório”, diz, ressaltando que as condutas percebidas são gravíssimas.
“A ação levada a termo pelo denunciado demonstra absoluto descaso com a lei e total crença na impunidade. Mostra-se evidente que o denunciado Jeová Gonçalves de Andrade possui pouco ou nenhum respeito pela res pública e, consequentemente, na hipótese de permanecer no cargo, continuará se comportando da mesma forma”, registra.
Ao solicitar a medida cautelar de indisponibilidade de bens, até o limite de R$ 3.918.726,88, valor correspondente ao pago pelo terreno, o procurador lembra que os crimes foram praticados contra o erário público municipal, o que resulta em prejuízo para o ente federativo.
Transação entre Jeová e Branco da White escancara corrupção
Você já adquiriu uma área no valor de R$ 40 mil e ela foi valorizado em mais de 300% em apenas um mês sem que tivesse sido descoberto nenhum elemento precioso sob o solo? Certamente não. Mas o que é impossível para um cidadão comum aconteceu em Canaã dos Carajás e o caso poderia ser considerado “um milagre” caso a história não envolvesse o administrador público municipal e uma empresa privada acostumada a fazer negócios com a prefeitura.
O caso foi denunciado pela Procuradoria-Geral do Ministério Público do Estado do Pará para o Tribunal de Justiça do Estado do Pará no final de outubro. Esta ‘benção’ da valorização imobiliária tem início em julho de 2019.
No dia 4 daquele mês quatro pessoas da mesma família firmaram com Cristiano Augusto da Silva um contrato de promessa de compra e venda de 32 lotes, frutos de uma herança, em Canaã dos Carajás, no sudeste paraense. A área total compreende 10.002,36 m².
O Correio de Carajás teve acesso a estes contratos e conforme os documentos Ana Claudia Brabo Paixão, Carlos Donizete Brabo Paixão, Antonio Carmem Brabo Paixão e Maria Nilvia Brabo Paixão comercializaram oito lotes – localizados na Avenida Minas Gerais, Rua Alagoas, Recife e Weyne Cavalcante, no Loteamento Santana – por R$ 10 mil. Ao todo, Cristiano desembolsou apenas R$ 40 mil pela área adquirida.
Pouco mais de um mês depois, em 8 agosto, o corretor Edmilson Silva Almeida, a pedido de Cristiano, avaliou os mesmos 32 lotes em R$ 3.928.000,00, ou seja, de acordo com a análise contida em Parecer Técnico de Avaliação Mercadológica, em apenas 34 dias a mesma área passou a valer quase 100 vezes mais, sem ter havido qualquer fator que pudesse explicar essa valorização.
Cerca de 10 dias depois, entre os dias 18 e 22, a Prefeitura de Canaã dos Carajás emitiu boletos do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis para cada lote, com 28 deles avaliados em R$ 30 mil e quatro avaliados em R$ 100 mil, um valor de R$ 1.236.000,00 pela área total, menor que o avaliado pelo corretor particular, mas bem acima do contratado entre as partes.
Até aqui, a exorbitante valorização dos terrenos já chamava a atenção, mas até então o problema era exclusivo entre as pessoas físicas que haviam vendido e comprado os bens. A coisa fica mais nebulosa e consequentemente suspeita quando entra em jogo um nome conhecido das licitações públicas abertas na região de Carajás: a White Tratores Serviços e Comércios Ltda, que tem como sócio João Vicente Ferreira do Vale, o Branco da White.
Embora os boletos para recolhimento dos impostos tenham sido emitidos em nome de Cristiano Augusto da Silva e Sousa, os pagamentos foram feitos por meio da Conta 28.379-7, da Agência 3245-X (Parauapebas), em nome da White Tratores, conforme consta nos comprovantes bancários aos quais a Reportagem também teve acesso.
Ao todo, são 32 comprovantes, 28 no valor de R$ 600 cada e outros quatro no valor de R$ 2 mil cada. O pagamento de impostos referentes a um valor de mais de R$ 1 milhão demonstra haver interesse da empresa nos terrenos.
Pouco antes da compra dos lotes, no dia 2 de abril de 2019, Cristiano passou a integrar o quadro de funcionários da White Tratores Serviços e Comércios, empresa que recebeu nos últimos anos quase R$ 100 milhões em serviços prestados ao município de Canaã dos Carajás, que acabaria por adquirir os mesmos lotes.
Apenas cinco dias após emitir o último boleto relacionado aos impostos, que foram recolhidos imediatamente pelo Branco da White, em 27 de agosto a Secretaria Municipal de Obras de Canaã dos Carajás foge das atribuições comuns à pasta e faz nova avaliação dos terrenos.
Conforme memorando, o pedido partiu da Secretaria de Governo, a pedido de Jeová Andrade, e é importante frisar que o Branco da White possui contratos abertos com o órgão que agora faria a nova avaliação da área cujos impostos a empresa pagou.
Mesmo tendo acabado de tributar a área sobre o valor de R$ 1.236.000,00, o município o reavaliou em R$ 3.918.726,88, uma valorização de 317% em cinco dias e mesmo cálculo concluído pelo corretor privado contratado por Cristiano. A avaliação municipal foi assinada pelo engenheiro civil Adailson Alves e Sousa e pelo secretário municipal de Obras, José Wilson dos Reis.
Neste momento, o prefeito Jeová Andrade já demonstra interesse na área, mas apenas no mês seguinte, dia 2 de setembro, após a última avaliação da Prefeitura Municipal no valor de quase R$ 4 milhões, é firmada em um cartório local a Escritura Pública de Compra e Venda entre os primeiros quatro proprietários e Cristiano, com valores atualizados conforme o tributado, pouco mais de R$ 1 milhão, já bem acima dos R$ 40 mil que aparecem nos contratos iniciais.
Apenas um dia depois, em 3 de setembro, o secretário de Obras apresentou justificativa técnica para a desapropriação da área, alegando que ela seria utilizada para construção do terminal rodoviário. Dez dias depois o prefeito municipal, Jeová Gonçalves de Andrade, já havia encaminhado à Câmara Municipal de Canaã dos Carajás o Projeto de Lei 048/2019, que declarava a área urbana de utilidade pública para fins de desapropriação e que foi aprovado.
O documento descrevia que o valor a ser pago seria de R$ 3.918.726,88 pela quadra 06, do lote 01 ao 32, de propriedade de Cristiano Augusto da Silva. O projeto continha a justificativa técnica, a qual informava que os recursos para aquisição da área e construção da rodoviária seriam canalizados por meio da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), imposto que em 2020 garantiu um orçamento acima da casa do bilhão para o Canaã dos Carajás.
No mês seguinte, dia 23 de outubro, já havia sido publicada no Diário Oficial dos Municípios do Estado do Pará a Lei Nº 873/2019 a formalização da desapropriação, incorporando a área ao Patrimônio Público Municipal.
Enquanto isso, no dia 1º de Novembro, o funcionário do Branco da White, que possui relações bastantes próximas com a Secretaria de Obras, recebeu a exorbitante quantia e ainda pôde contar com o ‘apoio do patrão’, que recolheu impostos em nome dele durante o processo.
White Tratores faturou mais de R$ 110 milhões junto a Jeová
A White Tratores já recebeu dos cofres públicos de Canaã dos Carajás R$ 111.766.075,55 desde o início do primeiro mandato do prefeito Jeová Andrade, em 2013. Inscrita sob o CNPJ 04.000.710/0001-72, a White Tratores tem como sócios administradores João Vicente Ferreira do Vale e Mateus do Vale Bartolomeu e coleciona contratos firmados junto a diferentes órgãos da administração municipal.
Em 2013, primeiro ano do mandato de estreia de Jeová Andrade, a empresa faturou R$ 10.973.360,00. Em seguida, recebeu anualmente R$ 10.838.850,00 (2014); R$ 10.870.880,00 (2015); e R$ 12.684.203,00 (2016).
Jeová se reelegeu e assumiu novamente a Prefeitura em 2017. De lá para cá foram mais R$ 66.333.782,55 embolsados pela White Tratores. Em 2017, a empresa lucrou R$ 5.439.168,65; em 2018 outros R$ 16.755.105,10; em 2019 mais R$ 18.318.960,90; e em 2020 já foram depositados R$ 25.820.547,90.
Os contratos que geram os valores recebidos são variados. Um deles, que está em vigor, é derivado de uma licitação aberta em 2018 para locação de máquinas pesadas, caminhões e veículos de grande e médio porte, com operador e combustível, para realização de serviços continuados de preservação das vias urbanas e rurais.
O valor firmado em janeiro de 2019 entre a Prefeitura de Canaã dos Carajás e a prestadora de serviços é de R$ 18.318.960,00. Em um ano foi realizado um aditivo ao contrato em mais R$ 7.825.339,20, assinado em janeiro de 2020.
Mudança de planos fere a lei e escancara a fraude
Além do imóvel ter sido superfaturado supostamente para lucro do empresário com o dinheiro público, o Ministério Público aponta que havia impedimento legal da construção da rodoviária no terreno em questão.
A investigação demonstrou que a justificativa técnica do projeto de lei assinado pelo secretário municipal de Obras, José Wilson dos Reis, destacava que o terminal melhoraria a mobilidade urbana e o imóvel a ser desapropriado estava localizado na avenida principal, próximo a bancos, hospital, postos de saúde e hotéis.
Ocorre que o Plano Diretor Participativo de Canãa dos Carajás, disponível no Portal da Transparência, já havia destinado espaço específico para a construção, inclusive deixando-a fora da malha urbana para não prejudicar o trânsito da região central e pensar na expansão geográfica do município.
Além disso, o município já havia encomendado projeto, nos moldes do Plano Diretor, executado e registrado por uma arquiteta e urbanista. O local escolhido havia sido a Avenida Castanheira, no Bairro da Cidade Nova, e a área tinha quase o dobro do imóvel desapropriado pelo prefeito.
“Em resumo, o denunciado tinha sob o seu poder de alcaide um imóvel próprio da municipalidade, aprovado pelo Plano Diretor e já com projeto de construção registrado no Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo. Preferiu, no entanto, desobedecer a lei (Plano Diretor), jogar fora o projeto arquitetônico, para em seguida adquirir ilicitamente um imóvel superfaturado em mais de 100%, com inegável desvio de dinheiro público e descumprimento dos mais básicos princípios constitucionais da administração pública”, diz o procurador-geral.
Promotoria de Canaã dos Carajás também investiga o caso
O pedido de prisão do prefeito Jeová Andrade foi efetuado pela procuradoria-geral, em Belém, por se tratar de denúncia criminal contra gestor municipal. Acontece que o caso precisa ser investigado também no âmbito municipal, enquanto suspeita de improbidade administrativa, onde também devem ser investigadas as demais pessoas com envolvimento na transação.
A denúncia foi protocolada na mesma época – início de 2020 – em Belém e em Canaã dos Carajás. Em pesquisa junto à Consulta Pública disponível no site do Ministério Público do Estado do Pará, a Reportagem não conseguiu localizar nenhum procedimento sobre este assunto.
Embora a investigação criminal já tenha sido concluída em Belém, com robusto conjunto de provas, e resultado em denúncia, em Canaã dos Carajás a Reportagem foi informada de que há inquérito instaurado e que este ainda segue em investigação pela promotoria local, porém em sigilo. O prazo para conclusão do inquérito é março de 2021, informou a promotoria, acrescentando que o a investigação está avançada.