Às 21 horas em ponto, como se um relógio invisível desse o sinal na Avenida Sílvio Castanheira, elas aparecem. Três sombras conversadeiras no meio em um canto da pista duplicada do Residencial, escolhem o mesmo canto, o mesmo poste de luz, a mesma vista para o Tocantins que respira lento lá embaixo. Eu fico na sacada, cinquenta metros de distância, um espectador de novela sem legenda. Não enxergo os rostos, só adivinho as idades pela moldura das vozes: trinta e poucos? Quarenta e tantos? Tanto faz. O enredo é delas.
A cidade se ajeita para dormir. A Orla Sebastião Miranda acende um colar de lâmpadas, a Praia do Tucunaré vira desenho de papel carbono, Velha Marabá boceja, São Félix pisca longe como farol de quem sabe esperar. Elas, não: elas acordam.
— Hoje eu falei com Deus no ônibus, diz Nara, a de voz mais firme. — Pedi paciência. Ele riu de mim do jeito d’Ele: mandou troco em moedinha.
Leia mais:— Paciência? Joana ri baixinho. — Eu pedi entrega no prazo. Máquina de lavar parou e o cara disse “amanhã”. Tô no amanhã faz três semanas.
— Aham — Bel confirma, leve, como quem pendura um pregador numa linha.
Nara aponta o escuro onde o rio se deita.
— Olha isso, Joana. Isso cura. Se a gente respirasse Tocantins, não precisava de remédio caro.
— Cura quase tudo. O resto a gente põe na oração da madrugada — responde Joana, ajeitando uma mexa que eu não vejo, mas ouço.
— É, diz Bel.
O vento derruba um segredo de árvore. Passa um carro apressado rumo a lugar nenhum. Elas nem piscam.
— Tu soubeste da vizinha da última rua?, arrisca Joana, voz de quem abre uma gaveta proibida.
— Menos. Hoje, não, corta Nara. Hoje eu quero falar de fé e de boleto, que são duas coisas que andam juntas como sandália e chinelo.
— Aham, Bel concorda, devota do “sim” pequeno.
A conversa muda de assunto como quem troca de sandália.
— Minha mãe diz que casamento é obra por fases, Fase do reboco, fase das infiltrações, fase do telhado que voa, argumenta Joana.
— E fase do silêncio, responde Nara encostando a alma na palavra. — Quando amar é ficar junto e calar. Nem todo silêncio é briga. Às vezes é descanso.
— Hum, diz Bel, meio suspiro, meio oração.
Eu penso nas três como uma fogueira de palavras: Nara o graveto que inflama, Joana o papel que pega rápido, Bel a brasa que dura. De cima, a cena tem segurança de quintal: não há casa de um lado, nem comércio do outro, e mesmo assim elas se sabem guardadas, como se o condomínio, a rua e o céu assinassem um pacto de não tocar. Vulnerabilidade é coisa que mora em notícia; ali, mora um pacto de vizinhança.
— E a escola do menino?, Nara volta ao giro do mundo.
— Tá indo. A professora disse que ele escreve “tucunaré” com dois “cês”, mas a gente mora na beira do peixe, não da letra, Joana ri, batizando erros com afeto.
— É, flameja Bel.
Nara puxa um bolso de Bíblia e diz: Domingo eu li Salmos 121. “Elevo os olhos para os montes”. Aqui a gente eleva pros morros de luz da orla. Dá no mesmo: a ajuda vem.
— Vem sim. Às vezes disfarçada de amiga que aparece às nove da noite com pão e conversa, Joana belisca o ar.
— Aham, devolve Bel.
A noite engrossa como café passado duas vezes. Os barcos viram vaga-lumes lentos no rio. O vento muda de rua e traz cheiro de açaí distante, de cachorro-quente na esquina que não existe. Elas se ajeitam nas próprias pernas.
Meia-noite passa por nós com passos de gato. Eu penso em descer, perguntar o nome delas, oferecer água, contar que da minha sacada dá pra ver o desenho que elas fazem no chão — três pontos de luz de celular, três sombras que bordam o mundo na linha da calçada. Mas não desço. Alguns encontros precisam ficar no domínio do talvez para não virarem notícia velha.
Penso que Bel escolheu um método: economiza sílabas para o que importa. Talvez, quando chegue em casa, ela despeje um poema inteiro na pia enquanto a água corre. Ou talvez não. A beleza do mistério é o descanso da curiosidade.
— Olha São Félix — Nara aponta. Piscando pra nós, feito aviso de que sempre tem outra margem.
— E Velha Marabá ali, escorada na memória, Joana completa: a cidade é uma senhora com três saias: a orla, a praia, o rio.
— Hum, Bel, bordando um “amém” que não precisa de igreja.
Eu bocejo e me rendo. A cama me chama com sua liturgia de lençol frio. As três continuam, firmes como santo de procissão que não se cansa. Levo comigo a certeza de que, em Marabá, há conversas que seguram o céu no lugar. Elas ficam. Eu vou. Amanhã, às 21h, o relógio invisível tornará a soar — e eu estarei na sacada, outra vez aluno dessas três professoras de noite.
* O autor é jornalista do CORREIO há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.