Domingo em Marabá tem cheiro de café passado antes do sol nascer. Quem corre sabe: a cidade muda de tom quando os primeiros passos batem no asfalto. E foi nesses domingos, entre a Nova Marabá e o embalo das avenidas da Cidade Nova, que Givaldo começou a perceber uma silhueta que cruzava a linha de chegada com um sorriso mais bonito que troféu.
Helena. Sempre com o mesmo boné azul-marinho, as meias coloridas combinando com o tênis, e um jeito de ajeitar os óculos no rosto que parecia uma dança secreta. Ele a via. Ela o via. Mas por muito tempo foram só acenos educados, uma piscada de olho aqui, um “bom dia, guerreira” ali. Coisa de corredor.
Não teve flechada, teve pace.
Leia mais:A aproximação aconteceu na Corrida do Aço de 2024, aquela considerada a maior e mais charmosa da cidade, que chama os corredores para a Orla da Velha Marabá e terminou com vento no rosto e banana cortada no prato. Os dois terminaram os sete quilômetros exaustos, mas inteiros. Helena, 38 minutos. Givaldo, 35. Mas foi no lanche da chegada que o tempo parou.
— Tua meia é da Kenner? — ele perguntou, como quem tenta puxar papo, mas entrega logo o jogo.
— É sim. Mas o charme tá no óculos — respondeu ela, tirando o acessório e revelando olhos que ele jurava ter visto em alguma outra vida ou em algum quilômetro anterior.
Conversaram ali por meia hora. Falaram do tempo de prova, do chip que não registrou direito na outra corrida, do gel de carboidrato que ele esqueceu de tomar e do isotônico que ela jurava que dava dor de barriga. Discutiram tênis com placa de carbono, meia compressora, e descobriram que ambos tinham uma playlist chamada “Baixa Pace” com as mesmas quatro músicas do Alok.
Depois daquilo, correram juntos em tudo que era prova. Helena passou a esperar Givaldo na largada. E Givaldo passou a não se importar tanto com o tempo. Começou a correr como quem acompanha música lenta. Trotava no ritmo dela. E ela sorria. Ele sorria. E o tempo virou coadjuvante.
Na Corrida da OAB, ele segurou a garrafinha pra ela. Na DMTU, ela ajeitou a camisa dele antes da largada. Na do Círio, ela largou a mão só pra amarrar o cadarço e voltou correndo pra pegá-la de novo.
E nas que aconteciam na Velha Marabá, era como se o pós-corrida fosse o prêmio. A orla se tornava sala de estar. Sentavam no banco, com as pernas ainda trêmulas, e deixavam o vento do Rio Tocantins bagunçar os cabelos e alinhar o sentimento. As mãos, inicialmente tímidas, foram se encostando por acidente. Depois por intenção. Até virarem endereço fixo uma da outra.
Os amigos começaram a notar. Um dizia: “Givaldo se apaixonou e o pace foi pro espaço!”. Outro brincava: “Helena vai acabar correndo até o altar com esse homem!”
E os dois riam. Mas sem pressa. Porque o amor deles era como corrida longa: exige constância, respeito e escuta.
Até que chegou o domingo da Corrida dos Namorados. Coincidência? Talvez. Mas aquele foi o dia em que ele planejava dizer. Dizer tudo. Do jeito que só quem corre sete quilômetros com o coração cheio consegue.
Givaldo ensaiou por dias. Treinou até discurso. Escolheu um cartão que dizia: “Você é meu pace perfeito”. Ia entregar após a chegada, com direito a beijo no pódio, se possível.
Só que Helena não apareceu.
Nem na concentração, nem no alongamento. Ele procurou entre os grupos, as tendas, o pessoal da pipoca. Nada.
Correu só. De novo. O primeiro quilômetro doeu mais que cãibra. O segundo, tentou convencer o peito de que era só atraso. No terceiro, ligou para o número dela. Caixa postal. Quarto e quinto, correu sem ver o percurso. No sexto, quis parar. Mas foi até o fim. Por ela. Ou por ele.
Ao cruzar a linha de chegada, não pegou água, não pegou fruta. Só pegou o celular. Duas mensagens perdidas. Uma do grupo da corrida e outra de um número desconhecido.
A do grupo dizia: “Alguém viu Helena? A bike dela tá na orla desde cedo.”
A do número desconhecido dizia: “Sou irmã da Helena. Ela sofreu um mal súbito enquanto pedalava. Está no hospital.”
A corrida mais longa da vida dele começava ali.
Passaram-se dois meses. E naquele domingo de outubro, Givaldo voltou a correr. Pela primeira vez sem esperar nada no fim. Nem abraço, nem risada, nem foto juntos com medalha.
Mas no quilômetro três, uma voz doce, meio rouca, soou atrás dele:
— Oi, corredor.
Ele virou. Era Helena. Com os olhos marcados pela internação, mas com o mesmo boné azul, a meia colorida e um papel dobrado na mão.
— Tô devagar ainda. Mas ouvi dizer que você tá mais lento também…
Ele riu. Ela riu.
— Corro no teu ritmo, Helena. Sempre corri.
E ali, entre o suor, o recomeço e a respiração ofegante, Givaldo percebeu: às vezes, o amor é só isso — encontrar alguém disposto a correr devagar só pra seguir do lado.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.