Foi um bilhete que me chegou às mãos, enviado por uma professora aposentada que fez questão de que me entregassem o papel escrito com caneta de cor azul.
Era, na verdade, uma terna declaração de saudade que me comoveu. Na saudade também continha uma declaração amorosa de quem, provavelmente, escolheu um amor para viver durante anos e até a morte.
“Meu esposo faleceu. Não quero mais ver o jornal para não lembrar dele”. Estava escrito assim na tradução da justificativa da mulher de 61, que pedia para cancelar a assinatura do CORREIO.
Leia mais:Pois bem. Tive até vontade de ligar para ela, mas achei invasivo incomodá-la e poderia soar interesse para que mantivesse a assinatura do periódico. Também por isso, não escrevo os nomes deles.
Acabei esquecendo o assunto, mas dois dias depois um zap no celular lembrou-me do pedido. O sobrinho da educadora aposentada pediu que eu fosse à casa dela. Estava convencido de que eu a faria voltar atrás.
Mas o jornal era tão ligado à imagem do marido, causando uma recordação forte que, naquele momento de falta que ele fazia, ela teria de sarar primeiro a ausência.
Era uma tarde de quinta-feira quando decidi visitá-la. No pouco que colhi, vi que o senhor que se foi (no ano passado) havia convivido com a leitura do jornal por 16 anos. Muito tempo e, com certeza, um hábito de recordação (nada fácil de esquecer). Um ritual que os dois se punham à leitura de notícias ou outras predileções.
“Às vezes com lágrimas nos olhos, ela remontou as manhãs de leituras ao lado do companheiro. O café cedinho, a dramaturgia dos dois bordando o convívio e o jornal, por esses anos todos, ali feito um gato”.
Sem forçar a barra e com carinho, achei uma forma de agradecer o tempo que o casal foi assinante e disse que os homenagearia a memória dele para o afago nela por meio de uma crônica. Um gesto de reconhecimento e atenção.
Sobre a assinatura do jornal? O sobrinho se comprometeu em receber os exemplares às terças, quintas e sábados e só mostrar para a tia quando ela tivesse mais recuperada da perda.
Como vivemos a tragédia prolongada da covid-19, quando se fala em padecimentos já me alerto para a razão da partida. Porque ainda não me acostumei com a omissão e com o desaparecimento de mais de 580 mil pessoas até aqui.
Segue a vida, mas não é assim. Há duas sextas-feiras, voltei a ficar espantado. Foi a vez de Carlos Alberto, um amigo de 52 anos, partir inesperado sem despedidas em decorrência desse thriller interminável da covid.
Posso até ter amanhecido morto hoje, domingo, 26/08, por causa de mal súbito. É do corpo. Ninguém espera, no entanto, que eu seja tungado (repentino) pela pandemia. Só para dizer que não caibo na perplexidade da retirada desse músico afável.
Centenas de mortos fazem parte de minha vida e os reverencio com alegria de ter convivido. Na covid, a lista saltou na desproporção”
Ando pensando em meus mortos. Das pessoas que se foram ao longo de meus 51 anos. Da primeira vez que ouvi que alguém de dentro de casa tinha morrido, era meu pai, exatamente aos 53 anos, lá em 1993. Foi levado por um AVC silencioso, que havia sido antecedido por outros três.
Antes dele, minha tia, Maria Helena, morreu de barriga d’água. Eu poderia contar nos dedos quantas vidas foram ceifadas em minha família antes da pandemia. Quando essa doença chegou, as mortes ao meu lado aceleraram.
Vai o meu afeto para os leitores que se foram e abraços para os parentes que aqui estamos. Agradeço a generosidade da leitura e a parceria.
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira