Tenho quase certeza que aquele 31 de dezembro, de algum fim de ano da década de 80, foi o melhor da vida dela. Achei bom por ela. E por ele também. Um e outro faziam mal aos dois.
Vou começar pelas confidências à minha irmã sobre orgasmo. Perguntou o que era orgasmo. Então nunca tinha tido um. E ouvi, sem querer, porque lá em casa não havia privacidade. Muita gente, vizinhos, corredor comprido e quartos pelo caminho do mosaico. Gente pra lá e pra cá dia e noite, principalmente quando papai chegava de viagem de três semanas pelo Itacaiunas e trazia meio magote de gente que se hospedava lá em casa.
Leia mais:Aliás, a casa praticamente virava uma pensão na Travessa Lauro Sodré. Mãe cozinhava muito e, é verdade, ganhava um dinheiro que dava pra ela fazer o que bem quisesse, sem precisar das esmolas de papai.
Mas, nos quartos lá de casa, toda conversa ou gemido vazava, porque não tinha foro e as paredes eram baixas. Por tempos, achei que mamãe passava mal quando ia se deitar com meu pai à noite ou depois dos almoços de domingo.
Evangélica, a amiga de minha irmã casou-se cedo, aos 16, com um menino da Assembleia de Deus que morava na folha 16. Um rapazinho, não mais que 17. Meninas crentes, naqueles anos, tinham o cabelo longo até perto das nádegas (e eram bonitas as dela).
Vestiam saia ou vestido até os tornozelos e não se davam ao atrevimento de batonzinho nos lábios vigorosos, olhos pintados de negro e maçãs chamariz. Nem brincos nem pulseiras nem rebolados na calçada.
Eram criadas para os outros. Foi guardada para se casar com o rapaz de família protestante. Mangas compridas de botões, calça social sambada, chinelos e uma Bíblia para cima e para baixo. Quase nunca levantava o olhar mais alto que o pai. Um comportado, obediente.
Um foi prometido à outra e se casaram sem nunca terem trocado ousadias na praça, nem nos becos da Velha Marabá, quando saíam para assistir à matinê no domingo, no Cine Marrocos (mas com minha irmã sempre do lado). E não podiam e nem sentiam vontade nem língua enfiada na orelha nem mão apertando os seios nem fecho-éclair aberto a uma penitência de joelhos. Guardar-se.
Foi um destroço. Pra ela, muito pior. Violento, o adolescente era um hipopótamo fora dos cultos. Toda transa vinha antecedida de açoites. Surra de murros, chutes e poucas palavras. Dela, nunca nenhuma.
Depois, arrancava-lhe a roupa, subia em cima, bufava por um ou três minutos e encerrava a noite. Calado, murcho, desgrudava da moça e se agarrava ao sono. Escapulia dali. Calada deitava na cama, calada saía, amargurada e sentindo-se um nojo.
Dizer a verdade, antes de se casarem, já apanhava na cara. Aos dois meses de namoro. Por qualquer coisa, longe do olhar dos pais não se fazia de santo.
Como ouviu da mãe a vida inteira, sacrifício para as mulheres era edificante. Degrau por dia, até a glória. O pai até que não era um cavalo. Era bruto, moralista, mas não espancava. O avô talvez sim, um coiceiro. A avó achava natural fazer com as putas o que não era permitido com a esposa. Nunca transou nua nem inventasse coisar por trás.
Por anos, a mocinha beijou abelhas. E todo fim de ano, duvidava que a vida fosse piorar. Num daqueles, depois de o rapaz passar dois dias bebendo e sem dar notícia, reapareceu. Espancou-a, usou-a e depois ligou a radiola nas alturas. Música evangélica.
Ela achou que ia ser espatifada, mas tomou afoiteza e decretou que bastava. Basta! Esperou o sopapo, até fechou os olhos. Mas não. O fulano pediu que lhe arrumasse a mala, não se despediram e tomou o rumo.
Talvez, ele não gostasse de ser aquilo. Podia ser que não se apetecesse por mulher. Ela, ainda hoje, acha que orgasmo é beijar abelhas.
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.