Correio de Carajás

A memória das coisas que não querem partir

Com o tempo, minha esposa passou a ter horror a guardar tralhas. No entanto, tenho pena de pôr no lixo algumas destas coisas que ela vê como sem serventia, eu como possibilidades e lembranças. São caixas de parafusos, pregos, ferramentas, documentos que herdei do pai, raquetes de tênis… Por aí vai. A lista é longa. O espaço é curto.

Ela quer apertar um botão e desentupir a garagem e, principalmente, o quarto onde estão guardadas mil coisas, enquanto eu desejo guardar tudo para eventuais necessidades. Vai que tem de consertar algo, daí a miríade de pregos, parafusos, roscas serão necessários para resolver dilemas no quintal…

Estamos planejando uma nova casa e ela já deu ultimato que não muda com as tralhas que estão guardadas e que julga sem necessidade. Essa é a vontade dela, de ir mais leve na vida, sem carregar nas costas tantos objetos que vamos acumulando com os anos.

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Há muitos livros também. Meus e dela. A estante está estourando, além dos que vamos comprando aqui e acolá, ganhando, e se avolumam dentro de casa. Ana Raquel quer tirar a metade e deixar o espaço mais leve antes da mudança.

Não tenho força, ou a coragem, para triar e dar destino a toda uma vida traduzida em móveis, quadros, livros, roupas de estimação.

O que fazer com as fotos de meu pai, que faleceu há 30 anos e até hoje guardo carteira de trabalho, RG, entre outros documentos que ele deixou. Só escanear e guardar no computador, na nuvem? Não dá.

Ir para um novo lar sobrepõe começar a vida do zero? É complicado. Ela começou a comprar, aqui e ali, objetos novos para casa e vai avisando que os velhos não entrarão.

Mais perto de mim, minha sobrinha teve a mesma dificuldade em jogar fora as roupas da mãe, vítima do Covid. E eu fico aqui pensando em quem fará esse trabalho hercúleo na casa de uma velha senhora conhecida minha, já viúva e os dois filhos mortos, e que também partiu desta para melhor (espera-se), sob sequelas do vírus? Uma casa cheia de memórias de três gerações? O assunto é de ordem prática, mas não só.

Afinal, o mundo das coisas de uma casa foram parte da vida de alguém. Por isso, não são só meros móveis e objetos. São os móveis e objetos de… São testemunhas mudas. São bombas de memórias afetivas. Têm histórias, fizeram sentido, tiveram importância. Não é à toa que a tevê do falecido avô de meu amigo Luiz Fernando ainda mora com ele. Ou um toco de vela, de uma festa de aniversário de 30 anos atrás, achado, por acaso na gaveta, pode abrir a caixa de Pandora, iniciar um desfiar de histórias. Naquele dia, lembra? Lembro não, conta! Por isso, “o esvazia casa” é de ajuda prática, certo, mas o que me custa é a indiferença do business.

Minha sogra, que morou mais de 20 anos conosco, faleceu recentemente e minha esposa tratou de jogar fora meio mundo de coisas que dona Maria guardava – a maioria, de fato, não teria serventia. Mas neste caso, tem o objetivo de evitar ficar olhando para objetos e ter a dor da saudade retornando a cada bisbilhotagem.

O quarto foi pintado com novas cores, roupas foram doadas, Bíblias idem, e apenas álbuns fotográficos de família mantidos.

Vez em quando faço aqui em casa um exercício do desapego, mas não é fácil. Despeço-me, então, de algumas dessas minhas coisas velhas, desmonto com cuidado as armadilhas dos tocos de velas e ponho as memórias coladas nelas de volta no lugar, onde elas têm que ficar: apenas nas histórias que eu conto.

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica às quintas-feiras