Correio de Carajás

A insônia retorcida de dona Lúcia dos Prazeres

Já se iam 37 anos que dona Lúcia dos Prazeres não dormia. Quando me entendi por gente, ela já não tinha sono. Durante o dia, fazia coisas de dona de casa e, quando a noite chegava e as novelas anunciavam as cenas do próximo capítulo, ela permanecia acesa. Lendo, rezando, beliscando a geladeira, costurando besteiras, vendo o tempo ir pra frente, mas emperrado. Passando pela janela, pesado na porta da rua que nunca entrava na casa.

Não estava louca nem doente. Por insistência dos três filhos já grandes, aceitava ir ao médico mensalmente. Ia para que enchessem menos o saco dela. Abreugrafada, eles a deixavam em paz nas vigílias solitárias.

Mãe só dormia quando a última cria chegava, quando comia servido por ela e ia deitar na rede atada na sala. Uma verdade. Pai até ficava por ali, bodejava, prometia assungar o irresponsável que num chegava nunca em casa. Quando era a fêmea, espumava um pouco mais. Não estava certo, a menina moça até altas horas no meio do mundo cheio de rabos de burro. Mas cochilava, desabava e só acordava no outro dia. Dona Lúcia não, não!

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A insônia começou, sem ela saber direito, no 31 de Março de 1971. Pra falar a verdade, sequer entendia aquele alvoroço todo. Ainda mais porque tinha começado uma tal de Guerrilha do Araguaia e ela não entendia bem daquelas coisas. Depois, vários militares começaram a aparecer em Marabá. Pra ela estaria bom.

O marido se contorcia, falava aborrecido, vermelho, participava de reuniões, fofocava com vizinhos e se calava quando os milicos se aproximava. Num sei, num vi, num se escreve, ele respondia para todas as perguntas que os fardados lhe faziam. Naquele tempo, quem estava na Presidência era Emílio Garrastazu Médici e Marabá fora declarada Área de Segurança Nacional.

E dona Prazeres nunca quis se meter nos aboios do esposo. A casa e a criação das duas meninas e os marmanjos já eram obrigação demais. Três que faziam o ensino médio e estavam se encaminhando. Pois o menino mais velho resolveu sumir sem tomar a benção em 1971. Amanheceu e não anoiteceu. Ela soube porque pressentiu.

E por ouvir as pessoas fuxicarem, o caçula acreditava que depois da novela quando todos na casa iam dormir, a mãe se transformava em uma coruja. Para campear a cria, sumida por tempos e não mandar bilhete.

Entre os moleques de rua, tinha de ouvir a provocação de que era filho de uma coruja velha. Aperreada, sem notícias do galalau que desaparecido que amava jogar futebol no Granito, pairava a noite inteira. Até depois da cidade, até no Rio Araguaia, onde ouviu falar banhava-se por lá.

Tentava reagir, vingar os insultos à mãe que lhe fazia suco de tamarindo. Mas a gagueira lhe tomava as sílabas. Palavras furtadas, frases cortadas, textos sem pé nem cabeça. Medo. Sofria calado. E imaginava que o irmão fazia o mesmo.

Os silêncios daquela casa quase aparentemente vazia atravessaram décadas, embora netos tenham nascido e até dois bisnetos. Lúcia dos Prazeres dormia de dia e à noite brincava com os meninos e velava a volta do primogênito. À porta da casa, na boca da noite, três gerações de vizinhos lhe ouviam falar do rapaz belo, inteligente e sonhador.

Trinta e sete anos assim, olhos que não adormeciam. Ouvidos aguçados, já viúva. Noites e noites esperando que a porta da rua invadisse a sala. Vivo ou morto? Sabia que tanto tempo sem um sinal não poderia ser boa história. Mas como o viu pela última vez sorrindo, cantarolando Noel Rosa, haveria por ali uma sortezinha de mãe.

Faltando quatro meses pra ela morrer, aos 85 anos incompletos, trinta e sete sem sonhar, ele retornou. Num silêncio de torturador. Numa caixa que ela quis guardar em cima do guarda-roupa. Mas foi demovida. Soubemos que ela se foi, porque não me lembrava da última vez que a vi dormir.

 

* O autor é jornalista do CORREIO há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira