Conheci dona Ivete numa noite de sábado que começou tímida e terminou num pagode improvisado na varanda. Fui visitar as netas dela, que moram ali pelas bandas da Cidade Nova, e dei de cara com a velha senhora de 78 anos dominando uma cadeira de plástico como quem comanda um trono.
Sandália de tiras brilhando, cabelo arrumado com laquê e uma lata de cerveja suando ao lado. Quando me apresentei, ela soltou um “senta aqui, meu filho, que eu te conto uma boa”, e piscou do jeito de quem sabe que história boa precisa de plateia e de espuma.
Enquanto os passarinhos duelavam com o som da JBL tocando brega antigo, dona Ivete começou a narrativa com o orgulho de quem anuncia medalha: “Foi neste ano, viu? Madrugadinha de sábado. Eu e a Lucidalva, a tal amiga da minha neta, 32 anos, um fogo na roupa.”
Leia mais:Explicou que, embora costumasse sair com as netas, nesse dia as meninas furaram e só ela e a tal da Lu apareceram no pub. “Pub é como eles chamam hoje, né? Antes isso era bar mesmo. Mas tava bonito, música alta, eu dançando forró com um rapaz que tinha uns dentes que pareciam teclas de acordeom. Uma lindeza!”
Entre um gole e outro, ela descreveu o retorno pela BR-230, a Transamazônica estendida feito cobra quente no asfalto, vento batendo no rosto e a cidade ainda piscando luzes de madrugada. “Eu no banco do carona, Lu no volante, nós duas com a coragem que a cerveja dá e rouba.” A frase ficou pendurada no ar, feita cortina leve. Ela riu, aquela risada de quem já viu o mundo tropeçar e continuar.
“Foi quando apareceu o farol azul piscando lá na frente: PRF. Meu coração dançou um carimbó dentro do peito, mas o pé da Lu travou no freio.”
Contou que os agentes vieram com aquela postura de bula de remédio: letras miúdas de autoridade e efeitos colaterais. “Documento, habilitação, aquela conversa que a gente conhece. E eu pensei: bafômetro é certo. Aí, meu filho, me deu uma inspiração que não vem nos salmos.”
A velha encenou ali mesmo na varanda: mão no peito, olhos revirando, uma respiração de novela mexicana. “Tô passando mal, minha pressão!”, e se jogou no banco traseiro como quem se entrega a um destino dramático. “Se é pra enganar, tem de ter talento”, explicou, abrindo a bolsa e tirando um bolo de papéis. Eram receitas médicas da irmã, a dona Irene — “coitadinha, essa sim doente, mas de saúde real” —, todas timbradas, com nome e carimbo.
“Só que na pressa a gente esquece de combinar com São Lucas: a receita estava no nome dela e eu sou Ivete. Mas o sufoco ajuda a poesia.”
Lucidalva, segundo dona Ivete, entrou na cena como atriz veterana. “Seu guarda, estou trazendo minha avó do Hospital Municipal. A coitada passou a noite em observação, agora começou a passar mal de novo.” A moça mostrou as receitas com mão trêmula de atriz global, e os agentes, feitos árbitros de jogo difícil, se olharam procurando regra no manual. “Um olhou pro outro, outro olhou pro relógio, e eu lá atrás: respira, suspira, suspiro profundo de quem vê a Virgem Nazaré no teto do carro.”
Dona Ivete ergueu a lata, brindou com a tarde: “Sabe o que aconteceu? Eles mandaram a gente seguir. Sem bafômetro, meu filho! Sem apito, sem sermão. O milagre da dramaturgia de beira de rodovia.”
E gargalhou, balançando o pé numa sandália com glitter que fazia a luz virar confete. Eu perguntei se não tinha medo de castigo divino por usar receita alheia no meio da Transamazônica. Ela me encarou com a serenidade de quem já viu o Tocantins encher e baixar: “Deus entende truques de sobrevivência. E a Irene me perdoa. Depois eu levei ela no médico direitinho.”
A neta, ouvindo do corredor, gritou: “Vó, a senhora não tem juízo!” Dona Ivete rebateu com um brinde: “Juízo é pra quem não dança. Eu, quando ouvir brega, vou.” E me contou de outras noites, de outras pistas, da Orla cheirando a peixe frito e perfume doce, das amigas que partiram e das que ficaram, e de como ela gosta de se maquiar com capricho “pra não ofender as memórias”.
A verdade é que, naquela noite, percebi que Marabá mora dentro de Ivete: ela tem as curvas da Transamazônica e a teimosia da chuva de dezembro. Tem a gargalhada que espanta carrego e a malícia leve de quem escolhe ser feliz mesmo com as placas de “proibido” na beira da estrada. Antes de ir embora, ela aproximou a latinha da minha mão, convidando: “Toma, prova o descanso da guerreira.” Eu recusei, e ela riu mais uma vez, pequena, vitoriosa.
“Olha, rapaz,” concluiu, ajeitando o laquê: “se a vida te parar com giroflex e mandado, finge um pouco de poesia. Às vezes, é só isso que separa a multa do milagre.” E piscou, como no começo. Naquele instante, entendi que a crônica já estava pronta: era só seguir viagem, sem bafômetro, com o coração calibrado na medida exata entre a arte de contar vantagem e a coragem de continuar dançando.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.