Uma das meninas mais arrebatantes de minha rua, na Travessa Lauro Sodré, Velha Marabá, foi furtada por um barbudo que tinha chegara meses antes, vindo de Goiânia. E como eu tive inveja daquele abestado que a levou para Brasília! Um rapaz, mais velho do que nós (meninos “réi” da esquina, sem cuecas e pinta solta no calção de elástico).
Sei que foi uma fofocada na cidade toda, por dias e meses, até a história virar lenda e ser recontada do jeito que cada um queria usar. Um escândalo para os adultos (maledicentes) e motivo de vexame para os pais da adolescente, de apenas 14 anos.
Rafaela, nem sei se era essa boniteza toda (a memória romantiza), virou mito na cabeça dos pirralhos e disparates das garotas. Do que recordo, alimentei meus comichões de pré-adolescente com a morenice dela, os cabelos longos e duas covinhas quando sorria – e parecia que sempre sorria para mim.
Leia mais:Sei também que, diferente de muitas meninas do calçamento, havia nela um desenho precoce de mocinha. Seios mais manifestados, curvas que os olhos não tiravam o olho e conversas que meninos não podiam ouvir. Baitolagem de menina metida a mais velha, apesar de ainda brincar de boneca de papelão na porta de casa com as filhas das vizinhas.
E, talvez, porque as ninfas amadureçam bem antes do que os mijões de rede, havia nela um ar de quem vai ao cinema se encontrar com aquele barbudo. Que já sabia dos romances, da língua dentro da orelha, dos arrepios e da falta de impedimento de arriscar (com tão pouca adolescência) e ir viver longe das asas dos pais e a língua dos outros.
Ela era, sim, diferente. E dentro do Cine Marrocos – no matinê – aproveitava para deixar o goiano tirar as casquinhas que queria. Ele não prestava atenção no filme, só querendo, querendo, querendo…
Via naquilo uma revolução. Na época, todo cara vindo de Goiânia era maconheiro. Mesmo sem ter botado, nunca, um Arizona na boca. E a maconha, uma desgraça do cão que teria a ver com tatuagens azuladas, ladrões, gente que matava, estuprava, esfolava e outras eguagens de católicos e evangélicos.
Nem sei se o rapaz era surfista, como diziam, se fumava ou não maconha. Foi o que se espalhou correndo de casa em casa e vendido como a perdição da filha alheia. Futricas de Maria. E era assim mesmo que falavam da filha da vizinha: tá perdida.
Ronildo, que morava quatro casas depois da minha, quis também roubar uma moça (a Rebeca, a Wilma, a Débora, a Kelseny, a Ana Beatriz, a Tereza Cristina…) e ir morar no Recife. Ter um Fusca ou uma Variante, viver dos beijos e, claro, dar um teco na erva dos índios.
Desejo encantado de quebrar a regra, reescrever o destino, de ter vontade de dançar sem ter vergonha do racional. De duvidar das coisas retas, impedidas ou das impossibilidades…
Voltando à história da Rafaela, passei alguns anos sem saber o que fora feito dela. Fica me perguntando se havia virado uma senhora careta, empanturrada de moral, se tinha medo que suas filhas fugissem com um surfista, também.
Se achava um horror a marcha pela liberação da maconha e o casamento entre apaixonados do mesmo sexo.
Algumas semanas atrás encontrei com ela em um corredor da Câmara, sentada, aguardando um vereador para conversar. Não a reconheci de chofre, mas ela foi quem me reconheceu e me fez passar a vergonha de confessar que não a reconheci.
E, então, lhe perguntei como, uma menina que era tão bonita reconheceria um frangote da infância. Ela confessou que, de início, não sabia quem eu era, mas o nome nas colunas do jornal a fez viajar no tempo e lembrou-se do filho de dona Maria José e do Chico Pompeu, do número 444 da Lauro Sodré.
Me segredou como sua vida foi sofrida desde que fugiu com o homem que achava que era para a vida toda. Teve dois filhos e foi proibida de sair de casa sem a autorização do Barbudão que a levara de Marabá.
Por fim, conseguiu denunciar à polícia o abuso que sofria, mas acabou pedindo esmola com os dois filhos na Rodoviária de Goiânia para conseguir dinheiro para as passagens e retornar a Marabá, onde foi bem recebida pela mãe e irmãs.
Nunca mais quis saber de homem, Ulisses, nunca mais! Mesmo assim,
Rafaela agora tem netos e diz que pede todos os dias para que evitem namorar tão cedo quanto ela. Mas precisam conhecer o amor, porque ele é quem liberta.
* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.