Carla Dias e Ana Rute Vieira, duas ex-colegas de trabalho, me atalharam semana passada nos corredores da Câmara Municipal para um recado. Um leitor do CORREIO DE CARAJÁS, de 77 anos de idade, está há tempos tentando ter comigo. E queria, por tudo, uma prosa pessoalmente. Queria que eu uma delas conseguisse meu endereço para ele tomar um táxi e ir à minha casa.
Seu Cláudio Rogério acabara de conversar com Ana Rute e Carla Dias e disse a ela que precisava falar sobre uma crônica que escrevi. Carecia comentar alguns trechos do texto.
Ana e Carla me avisaram que o senhor Cláudio não usava telefone celular e pedia para que eu atendesse uma ligação no telefone de uma delas minutos depois. Ele avisou que aguardava o retorno quase imediato. Preferia esperar pelo periodista “difícil” e desentalar algumas conversas.
Leia mais:No aperreio do trabalho, pedi o número do telefone fixo e garanti à Carla que ligaria na sequência para o leitor das crônicas. Prometi que o corre-corre não me faria esquecer esse compromisso paralelo. Recebi um papelzinho escrito com o nome dele e os numerais. E Ana Rute me enviou um lembrete pelo zap para que a ligação não ficasse para outro dia.
Para não esquecer entre uma e outra demanda, anotei o telefone na palma da mão. E, em seguida, decidi ligar logo. Disquei o número, teclei, digitei. Uma voz masculina me pediu um momento, depois que dei boa tarde e disse quem falava.
Ele retornou e reiniciou: Ulisses, é você mesmo? Repeti que sim. Então ele mandou de lá para cá. Não irei tomar muito seu tempo, você é jornalista. O tempo deve encurralá-lo. Respondo que não se preocupe, fique à vontade. Na simplicidade, ele me disse algo genial. Aos 77 anos de idade se tornou um “leitor profissional”, e desde os 43 lê o “Correio do Tocantins”.
Leio tudo, me diz e se apraz. Agora, mesmo, estou lendo um livro de poesias de Ademir Braz, o Pagão – “Rebanho de Pedras”. Livro maravilhoso. Disse a ele que eu era apaixonado pelo estilo de Ademir Braz, que foi quem me inspirou a escrever crônica.
Diz-me também que é leitor do que escrevo nas reportagens, quando em figura de raposa entro na casa dos outros fuçando coisas. Traficando palavras, oferecendo besteiras e despretensões.
Me avisa e vejo pela imaginação sem telas, a crônica que queria demarcar algo. Antes, ele me conta e muda o tom de voz para um doído carpir, sobre a esposa Inês Fernandes.
Foi um amor de 56 anos, me confidencia sem pedir off. Não o vejo chorar, mas aparenta estar marejado. Ulisses, ela morreu ano passado, aos 76 anos, depois de coisas do coração enfraquecido. Eu esperava morrer primeiro. Quem vai primeiro, se ama muito, sofrerá menos.
E você, Ulisses, leu palavras minhas, minhas frases, escreveu quase que literal minhas incomodações com a falta que ela me faz. Foi na crônica “Um amor para dona Divina”, de algum tempo atrás.
Você começa assim, lê do outro lado da ligação: “De repente, pessoas próximas desembestaram a morrer. Uma sensação de que a fila se apressou e um falecido foi puxando outro e embarcaram na mesma balsa para o indizível”.
E você continua e vai abrindo meu corpo e arrepios. “A saudade é uma criação da memória, mas a convivência nos faz rachar as bandas”.
“Os retratos achados, as gavetas…”, puxa vida! Passei a procurá-la nas gavetas de uma vida. “Os vãos da casa…”, ando tateando qualquer presença de Inês. “As roupas dela…”. Você parece que estava aqui.
E aí, a crônica matou-me de vez quando escreveu sobre “a vontade de um último abraço”. Matou-me, rasgou de novo a saudade. Há semanas, penso sobre abraçá-la pela última vez. Nem que fosse ligeiro…
Fiz cem trovas para ela, ele me diz e pede para ler uma. “Aquele meu abraço, que eu queria lhe dar, ficou solto no espaço. Nunca mais vou realizar”.
Era só isso, Ulisses. Desculpe. Precisava dizer sobre esse texto, a vida, a morte e as lembranças dela. Minha vida meio que está apenas indo, perdeu muitos sentidos. Então, leio para o tempo não me encurralar tanto.
Eu agradeci a leitura que ele fez, tentei abraçá-lo mesmo pelo celular. Desejei que o sublime de dona Inês apascente as recordações de seu Cláudio. Deve ter sido um amor mesmo.
* O autor é jornalista do CORREIO e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.