Duas histórias bem diferentes remoem meus sentimentos mais sensíveis nos últimos dias. Como muita gente, semana passada me comovi com a história do pai que segurava a mão de sua filha morta após o terremoto que devastou a Turquia e a Síria. Havia, na foto, apenas a mão visível sob o teto que foi ao chão, uma ponta do lençol rosa escapando do colchão esmagado, os dedos frouxos tenuemente estendidos como se ainda desejassem o toque.
À imagem desse pai que aguardava a chegada do resgate nos escombros da Turquia, os ombros encolhidos dentro do casaco pesado demais, o olhar ofuscado pelo clarão da morte, dedico minhas condolências.
Eu passei os últimos dias tentando entender como seu coração estava dilacerado. Queria lhe dedicar mais do que esta comoção apressada, mais do que este arremedo de compaixão.
Leia mais:Entre as vítimas do terremoto havia uma senhora que gritava por ajuda com voz chorosa e enfática, e avançava entre os destroços de mais um prédio arruinado, já sem forças para erguer uma única pedra, um ínfimo tijolo, um naco de reboco, nada. À senhora que empenhava todos os seus esforços em implorar, e rezava aos céus e rogava aos homens sem nem erguer os olhos, à senhora que preferia investir sua dor na ineficácia das palavras. A essa senhora que jamais me ouvirá, queria dizer que ouço os seus gritos, e que creio que os decifro, mesmo que não entenda uma única frase de sua remota e sonora língua.
Esta semana, eu precisei mudar de casa. Havia muitos objetos ainda servíveis que minha esposa e eu decidimos que não levaríamos. Fizemos uma seleção para doação e escolhemos uma vizinha quase de frente na rua em que moramos. Eva, como é conhecida pelos outros moradores, agradeceu com muita simplicidade e me convidou para conhecer sua casa.
Foi um choque. Como, morador da Luiz Gonzaga há 18 anos, eu não conhecia a fundo a necessidade daquela senhora, que não tem marido, nem emprego, nem joelho suficiente para exercer uma atividade laboral decente. Sua casa não tem reboco, o piso está no cimento grosso e depende de outras pessoas.
E, então, me perguntei: como saio de casa, no Bairro Bom Planalto, para ajudar a família de uma adolescente no Bairro Coca Cola, a 15 km de onde moro, e não tenho olhos para ver a vizinha carente em frente à minha casa. Às vezes, nos sensibilizamos com as histórias mais distantes, como ocorreu semana passada com a imagem daquele pai turco.
A súplica de EVA é silenciosa e sua história jamais passe na TV, como a das personagens que citei acima. E se passar, é mais fácil comover os que moram mais distante dela do que o meu coração de pedra.
Minha vizinha me convocava silenciosamente há vários anos com seu choro cotidiano por um amparo. A cada chegada e saída de casa, quando eu passava em frente à sua humilde residência, de carro, deixando só poeira, era uma súplica que não atendi.
Agora, que já estou morando em uma casa mais distante, talvez eu consiga enxergar suas necessidades, sentir sua fome e estender a mão. Parece que quanto mais perto estamos do outro, mais distante ficamos. Isso é terrível. Isso não é bom.
Mesmo que a televisão não cale quando termina a notícia do sofrimento do outro, eu sim me calo, eu sim continuo a ouvir sua súplica desesperada, e então mudo de canal.
Um dia será preciso falar sobre toda essa comoção acelerada, parente mais severa da alegria efêmera, da zombaria furtiva, da indignação perecível. Um dia será preciso falar sobre essas emoções passageiras que têm constituído os nossos dias, essa variação desenfreada entre afetos díspares, do riso debochado ao choro desabrido, do escárnio ao enternecimento em poucos minutos, em poucos cliques. Um dia será preciso falar sobre tudo isso, mas hoje não dá, hoje não posso, porque tenho pressa e o mundo me convoca a ver mais, a me comover mais, a me apiedar mais, a me alegrar mais, a me indignar mais, e a tudo esquecer quando moro pertinho do outro.
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira