* Ulisses Pompeu
Minha tia-avó quando estava para morrer, velha e bem queimada de sol, caducava pela terra que tinha. E como era uma criatura nascida e criada no beiradão do Itacaiunas, viveu entre o verão seco e o inverno muito chuvoso numa pequena propriedade herdada acima da Cachoeira Preta.
Por último, já perto de se encerrar, não havia quem conseguisse fazê-la ficar na cama ou na cadeira de balanço onde, à noitinha, tragava maconha. Fumava feito um cigarro normal e nunca deu para coisa ruim. Foi o invés.
Leia mais:Acabou morrendo de morte esperada. Sem uma dor na unha nem câncer de dias contados. Não. Comeu torresmo até horas antes de chegar ao fim e deixar o corpo para ser enterrado num cantinho da terra, perto da margem do rio, porque queria ter certeza que tomaria banho quando o nível do Itacaiunas subisse. Calculou todos espaços, confidenciou ao neto predileto o quadrante exato da sepultura. “Plante bromélias, só bromélias. Não deixe, jamais, derrubar uma castanheira dessa mata”, clamou.
Na fazenda dela, isso era pouco comum. Não se derrubava nem queimava pé de pau. Seco que fosse. Ali, menos esperasse algum pássaro ressuscitaria o tronco morto. Um ninho cavado no oco, uma tigela de palha e as ninhadas recorrentes.
Coitada da tia-avó! Era um homem “todim” e não sei por que não veio ao mundo assim. Apesar das vaidades, dos batons na penteadeira e uns pós para amenizar o sol queimado na cara, era um moço. Pariu 13 filhos, criou 10.
E depois de ficar viúva, ainda viçosa, não quis mais saber de homem em sua cama de mola. Pulei muito nela. Teve uma amizade, muito falada pra aquelas bandas do Itacaiunas, com dona Maristela. A que cuidava da cozinha e barria ciscos.
Quando havia hóspede na casa, dormiam em quartos separados. E os filhos que não aceitavam, paciência. Não fazia diferença. Ainda bem, a bivó nunca dependeu de ninguém pra andar com as pernas.
Meu pai sabia que eu gostava dela. Quando fiquei maiorzinho, queria ir sozinho, de canoa, para a casa daquela senhora magra, macilenta, mas não era perto assim. Dois dias de barco paco-paco. E nas férias queria sempre subir o rio e passar um dezembro ali. Quando e ia pra lá, era tratado feito um príncipe. Príncipe da floresta encantada dela. Lugar bonito, da noite bonita. Diziam ter uma montanha empatando a chuva atravessar no verão.
Nem sei por que estou confessando isso num jornal. Intimidades de família que a rua não poderia saber e maldar. Besteira. As histórias vão assim pela existência.
Mas sei por que quis contar. A tia-avó veio a semana inteira, invadir as memórias. Perto de morrer, já sozinha, nunca casa da Rua Benjamin Constant, e eu por ali, ela apanhava o regador de plástico e ia para uns jarros de plantas de mentira. Eu havia lhe presenteado para enganar sobre a seca de dois anos seguidos.
Diariamente, regava com água invisível do regador… Mas ela fazia aquilo com tanta verdade (cantarolando e, certamente, mirando o tempo de chuva, plantas e bichos), que voaram uns beija-flores por lá numas flores que não existiam nem cheiravam. Tão estranho. Doce pra eles não havia… Dias depois, enterrei-a longe das bromélias.
* O autor é jornalista do CORREIO há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira