📅 Publicado em 25/12/2025 10h30✏️ Atualizado em 24/12/2025 20h24
Quando soube, numa manhã de calor paciente, que aquele homem percorria todos os dias quarenta quilômetros para chegar a uma aldeia no centro da TI Mãe Maria, tive a sensação de que estava diante de um personagem que já vivia, há muito, fora do tempo – como se tivesse feito um pacto silencioso com uma rotina que não envelhece.
Conheci o professor Everton numa dessas visitas em que a gente vai para colher informações e volta trazendo histórias. Eu estava em missão de reportagem, mas, desde o primeiro instante, tive a impressão de que havia entrado na órbita secreta de alguém que construiu um mundo próprio, e ali habitava com absoluta convicção.
Ele não pertence à aldeia, mas foi adotado por ela por força de permanência. Sai todos os dias da Folha 27, em Marabá, muito cedo, de carona com colegas diversos. Não que lhe falte dinheiro. O salário que recebe permitiria comprar um automóvel confortável, desses que encurtam distâncias. Mas ele jamais quis aprender a dirigir. Nem moto possui. Bicicleta? Nem pensar.
Leia mais:Tem quarenta e cinco anos e um ar de quem nunca se apressou para viver o que quer que seja. Não casou, não fala de amores, não deixa escapar qualquer confidência que revele paixões. Os colegas especulam, o cacique já levantou hipóteses, e todos tentam decifrar aquele silêncio. Eu, de minha parte, aprendi que há existências que se bastam naquilo que escolhem calar.
O que rompe essa reserva é a cozinha. Não me surpreendi ao vê-lo, ainda antes do início das aulas, tomando posse do fogão como um maestro que se ergue diante da orquestra. Enquanto alguns professores improvisavam conversas na sala dos educadores, ele fervia água, picava temperos, abria panelas com um zelo quase religioso. Ali, na cozinha da escola indígena, parecia finalmente encontrar um território onde tudo respondia à sua vontade.
Mais tarde soube que aquela organização não era um capricho ocasional. Everton, ao longo dos anos, levou para a escola a própria geladeira, o liquidificador, uma panela elétrica, colheres, facas, potes. Considera os utensílios coletivos permanentemente contaminados por uma desordem que o aflige. Prefere cuidar dos seus, limpá-los, secá-los, alinhá-los como quem prepara um altar. De segunda a sexta, serve a si mesmo as refeições que prepara, por vezes também aos colegas, desde que respeitem sua liturgia.
Esse rigor se estende a tudo. As gavetas de casa, dizem, guardam peças íntimas organizadas por cores, como se cada tecido precisasse ocupar o lugar exato que lhe foi atribuído. Em sala de aula, as provas são entregues seguindo a ordem alfabética e devem retornar exatamente na mesma sequência. Há um traço de inflexibilidade em seus gestos, um compromisso obstinado com a ideia de que o mundo, se não pode ser domado, pode pelo menos ser arrumado.
O curioso, e aqui reside um tipo de paradoxo, é que sua relação com a linguagem, campo onde leciona, não alcança o mesmo rigor. Tropeça na concordância, hesita no acento, comete deslizes que o irritam, mas que parecem fazer parte de uma batalha perdida. Corrige os alunos, mas se corrige também, num esforço que nunca termina. Essa fragilidade, porém, longe de diminuí-lo, o humaniza. Há algo de comovente em vê-lo lutar com palavras que escapam, enquanto organiza com obsessão o que é palpável e ordenável.
Fala pouco. Quando fala, é austero. Não mede elogios, evita intimidades, cobra pontualidade, disciplina, silêncio. Exige da direção o que considera necessário para o bom funcionamento da escola e não hesita em discordar quando entende que a ordem foi violada. Alguns o consideram severo demais. Outros aprenderam a respeitar seus limites. Na aldeia, o velho tempo se acostumou a conviver com ele.
Eu o observei de longe naquele dia. A maneira como colocava o café na xícara, o modo atento de posicionar as panelas sobre o fogão, a impaciência discreta diante de qualquer desvio. E, ao mesmo tempo, percebi uma delicadeza rara: ao servir, olhava nos olhos; ao pedir silêncio, baixava levemente o tom. Havia nele, por baixo da carapaça dura, um cuidado que ninguém anunciava, mas todos sentiam.
Saí da comunidade com a impressão de ter encontrado alguém que nos obriga a um exercício de compreensão. Gente assim nos atravessa como um espelho incômodo: revela nossas impaciências, nossa pressa, nosso impulso de julgar. Everton, com sua vida meticulosamente arrumada e suas imperfeições confessas, é daquelas figuras que pedem distância e, ao mesmo tempo, respeito.
Talvez jamais saibamos o que o move. Talvez ele mesmo não saiba. Mas há um sentido discreto na sua permanência: todos os dias, pela mesma estrada, ele insiste em ir. Leva consigo seus hábitos, suas manias, sua severidade. E, sem fazer alarde, sustenta o cotidiano de uma escola que aprendeu, à sua maneira, a conviver com ele.
A crônica termina e fico com a sensação de que esse homem, tão diferente de mim e de você, apenas nos lembra algo simples: cada um carrega seu próprio modo de permanecer no mundo: e é preciso certa delicadeza para não quebrá-lo.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
